terça-feira, 22 de abril de 2008

SEM CULPA

As investigações da polícia indicam que o pai de Isabella a atirou pela janela para simular uma invasão ao seu apartamento e, assim, se livrar da culpa pela morte da filha. Os laudos apontam que a menina ainda não estava morta e que a queda foi fundamental para que isto realmente ocorresse. Na hora do aperto, teria falado mais alto para o pai a possibilidade de se livrar da culpa do que a de salvar a filha. E, depois, a estratégia de defesa, a encenação, prevaleceu sobre um possível arrependimento. No passado, um pai nesta condição poderia pensar “foi um acidente, um impulso, eu amava minha filha, não tinha a intenção.” Mas o fato de ter feito isto, de ter matado a sua própria filha, mesmo de forma não pensada, já seria suficiente para que ele se torturasse em sua consciência: “Mesmo sem querer, Deus sabe que fui o responsável, não tenho como escapar, sou culpado, serei punido.” A noção de crime culposo (sem intenção), além do doloso (com intenção), era interna às consciências e não só uma distinção jurídica.

Hoje, as consciências pesadas, em crise por ter feito algo errado, estão desaparecendo. O importante não é o fato de ter cometido um crime, mas de ter uma razão que justifique tal atitude. E temos um bom argumento para tudo que fazemos, das pequenas às grandes maldades, sempre podemos nos desculpar. A própria sociedade, a ciência e a medicina fornecem uma série de boas razões: “Fiz isto porque a sociedade é injusta, só os ricos podem tudo.” “No fundo, todo mundo faz isto, por que eu não posso também?” “Meus pais foram assassinados na minha frente quando eu era criança, então, fiquei assim.” “Estava sob efeitos de drogas.” “Foi um ato impulsivo causado por um descontrole químico no meu cérebro.” No futuro talvez se diga: “Não sou culpado, sou vítima de uma determinação genética.” Se não tinha a intenção, não foi sua culpa, você só não pode se ser apanhado pela polícia, não pode deixar que encontrem provas do seu crime e que a sociedade o puna. E, assim, vamos encontrando pais que podem jogar a filha pela janela, como quem apaga as digitais, ou assaltantes comuns que queimam viva uma família dentro de um carro para não deixar evidências. E podemos entender que estas pessoas sejam, depois de seus atos, recebidas, acolhidas e compreendidas por seus familiares e advogados que tudo fazem para ajudar na camuflagem da ação criminosa.

E mesmo que a polícia me pegue, aponte provas que me incriminem, poderei me safar no julgamento. As provas nunca são absolutas, evidentes por si, inquestionáveis. Sempre dependem da interpretação do juiz, do júri, dos bons argumentos e da capacidade de sedução e empatia dos advogados. Basta ter dinheiro para ter bons advogados. Bons argumentos podem ser comprados. Enfim, se for condenado e punido, é porque não tive dinheiro para comprar uma boa desculpa. De qualquer forma, foi uma injustiça por eu ser pobre, pois, sei que sou inocente, que tinha boas razões para fazer o que fiz.

Como o que importa são os argumentos e não o ato, o delito cometido, na iminência de ser flagrado posso até me antecipar e fazer uma confissão pública dos meus deslizes, como fazem políticos americanos ou brasileiros. Mais uma vez, basta ter dinheiro para que bons conselheiros, experts em marketing pessoal ensinem qual a melhor cena a ser feita, qual roupa usar, quais emoções expressar. Explicarei as minhas razões, pedirei a compreensão. “Na época pensei errado, não via a dimensão do meu erro, agora mudei, penso diferente, me desculpem.” Pensar errado, agir impulsivamente ou mesmo se dizer arrependido são desculpas para não ser responsabilizado por algo que se fez.

No passado, era impossível escapar da culpa e da punição por um crime. Se a justiça dos homens não te apanhasse, a justiça divina certamente o faria. Os homens, a polícia, se pode enganar. Deus, onipresente, jamais. Se não for punido em vida, será punido após esta, por toda eternidade. O olho de Deus estava sempre presente dentro de nós, em nossas consciências.

Passamos de um mundo organizado a partir da autoridade divina para um mundo organizado pela razão humana. Um mundo feito de idéias, conceitos, explicações, onde todos têm as suas razões e não há motivos para que uma seja melhor do que a outra. Daí o relativismo atual, condenado pelo papa e pelo presidente Bush, que clamam pelo retorno ao passado, por uma moral absoluta como Deus, do bem e do mal claramente definidos. Não percebem que sua idéia de Deus e do bem é apenas mais uma, que também não escapam ao relativismo. Impor um conceito sobre outros é apenas autoritarismo, nunca uma orientação ética.

A irresponsabilidade pelo que se faz produz efeitos perceptíveis em nossa cultura. Se qualquer pessoa pode encontrar justificativas para descumprir a lei, cabe aos governos ficarem mais vigilantes.Todos os humanos são potencialmente criminosos, então, o controle do estado deve ser máximo. Segurança total, cada passo deve ser observado. Quem sabe uma câmera em todos os cômodos de cada apartamento não teria evitado que casos como o de Isabella viessem a ocorrer?

Se desculpar, dando uma razão, é o mesmo que se colocar como vítima de algo que não diz respeito a você. As pessoas, assim, se reconhecem como determinadas por algo externo. A responsabilidade pelo que se faz é do outro. Perde-se a autonomia, ficamos como máquinas, robôs guiados por uma força exterior. Não temos mais alguma coisa que nos individualize, que possamos dizer eu. As pessoas começam a ficar muito parecidas umas com as outras, perdem o relevo individual. E se tudo pode ser explicado, mesmo que em perspectiva, o mundo perde seu mistério, seu encanto. A vida perde a surpresa, a magia. Passamos a viver uma rotina tediosa.

Deus, para nós, sempre foi um mistério. Nunca vimos o seu rosto, nem seu nome sabemos direito. Não entendemos com clareza quais são as suas razões. Suas leis eram apresentadas por homens que se diziam seus representantes, mas estes nunca foram confiáveis, tanto que as leis variaram dependendo da época, da cultura. Mas mesmo assim, nesta imprecisão, e talvez por isto, tínhamos a convicção de que Ele estava presente, a nos olhar, a nos avaliar, a apontar nossas falhas. Diante Dele éramos sempre imperfeitos. Só após a morte, na eternidade, quando nos uníssemos a Ele, seríamos completos, plenos. Esta era a base de nossa moral interna.

A razão nos trouxe a promessa que poderíamos tudo conhecer, tudo explicar. E, assim, encontraríamos a plenitude, a perfeição, ainda em vida. Mas estamos descobrindo que um mundo feito a partir de idéias e conceitos é um mundo em círculos. Uma explicação é um jogo de palavras que não tem fim. Uma explicação leva a outra, que leva a outra e assim por diante. Não existe explicação última ou a última é sempre a penúltima. Por mais que tenhamos um bom argumento, nunca ele é definitivo, inquestionável. O relativismo, o fato de não termos uma visão de mundo completa, não nos desculpa, mas nos responsabiliza por não podermos tudo saber. Ao invés da anarquia e da perda dos valores, o relativismo pode nos trazer a responsabilidade pelo desconhecido de nossas ações.

Se a idéia de Deus perde força em nosso mundo, podemos encontrar uma orientação ética justamente na impossibilidade de tudo argumentar. Nossa imperfeição não está em termos um ser perfeito com o qual nos comparamos. Não é uma questão de sermos menos, inferiores, pecadores. Mas devido à condição de possuirmos uma falta, um buraco irreparável dentro de nós. Há algo presente em mim que não sei dizer, que me escapa, que me faz incompleto. Existe sempre um sem nome a me olhar. E como minhas ações não podem ser plenamente compreendidas, elas guardam um tanto de surpresa. Somos um mistério para nós mesmos. Por isto, podemos ter encanto por viver mesmo sem termos a perfeição para alcançar.

Normalmente, se acredita que a individualidade está no que pensamos. Mas a experiência da razão nos mostra que o reino das idéias nos é externo. Qualquer um pode pensar o que pensamos. Só nos restam, como pessoal, as nossas ações no mundo. A forma como nos apropriamos e fazemos uso das idéias, dos argumentos. A nossa verdade está mais próxima do que fazemos do que aquilo que pensamos, em se dizer eu fiz e não eu sou . E por isto somos responsáveis pelos nossos atos. Posso escapar da polícia, dos homens, mas não escapo de mim, da minha imperfeição. E sem ela, em uma vida cheia de justificativas, perco minha liberdade, a possibilidade de me reinventar a cada dia. Fico preso a uma imagem de mim, sempre me repetindo. Não me renovo e, assim, vou morrendo lentamente.

E como julgarmos uma ação como certa ou errada, uma vez que as leis são idéias e, portanto, argumentos falhos em si? Talvez, podemos falar em algo condenável quando percebermos que um ato, como o assassinato de Isabella ou o cinismo de alguns políticos, nos tira a magia pela experiência humana.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

POR UM CLIQUE

Todos os dias recebo mensagens pela internet que evidentemente são falsas. Trazem links que, se clicados, automaticamente contaminariam meu computador com um vírus ou outra moléstia eletrônica. De uma forma geral, estas mensagens são facilmente reconhecíveis. Somos constantemente alertados sobre os e-mails falsos, sobre nunca abrir e responder a uma mensagem não esperada ou de uma pessoa ou instituição desconhecida. Uma avaliação racional das possibilidades indica que, na dúvida, é melhor não clicar. No entanto, deve ser grande o número de pessoas que caem na armadilha, pois, as mensagens enganadoras são cada vez mais freqüentes. Para muitos, o impulso deve falar mais alto que a razão. Pode-se tentar entender melhor o que ocorre a partir de uma análise do que estas mensagens portam. É possível dividi-las em dois grupos principais em relação ao seu conteúdo.

O primeiro grupo, e talvez o mais freqüente, é o das mensagens românticas. São aquelas que têm um fundo afetivo e carregam uma promessa de encontro com alguém querido. Muitas são encabeçadas por nomes que certamente, para a maioria das pessoas, trazem uma possibilidade de recordação amorosa como Ana, Paulinha, Cris, Léo, Edu e Pedrinho. Nomes vagos que, pela sua imprecisão, abrem uma série de probabilidades. “Deve ser aquela menina que conheci na balada outro dia. Ela deve ter encontrado meu endereço na Net.” “Pode ser o Fabinho lá de Ubatuba. Aquele que era conhecido do Lucas e ficou me olhando.” Algumas mensagens são acompanhadas de um link para fotos. “Você recebeu uma foto de Carol.” É mais difícil resistir ao impulso de clicar quando se pode ver e saber de qual Carol se trata. Outras não trazem nem nomes, nem fotos. Apenas frases do tipo: “Alguém que gosta muito de você está te mandando um cartão eletrônico.” “Estou com saudades. Quer fazer parte do meu grupo de amigos?”

O segundo grupo é o das mensagens paranóicas. Normalmente vêm acompanhadas de uma ameaça de danos judiciais ou financeiros. Têm como signatárias instituições do governo ou econômicas. “Você está com pendências na Receita Federal. Seu CPF poderá ser cancelado caso não responda imediatamente a esta mensagem.” “Sua conta foi bloqueada por motivos de segurança. Clique no endereço abaixo para mais informações.”

Em ambos os grupos existe uma promessa. Ou uma promessa amorosa, como nas mensagens românticas, ou uma promessa de prejuízos, como nas paranóicas. Outros tipos de mensagens falsas têm em comum com os grupos anteriores o fato de também portarem promessas. Seja de gratificações, prêmios, descontos ou vantagens exclusivas. Se nos livrarmos de todas as ameaças e perigos, se encontrarmos o nosso amor ou se ganharmos uma “bolada”, seremos felizes.

Olhando de fora, pensaríamos que uma pessoa, na sua sã consciência, esclarecida das ameaças de contaminação via internet, poderia facilmente raciocinar :“Não sei que Ju é esta; uma pessoa que realmente conheço não iria me mandar uma mensagem vaga assim” ou “Caso estivesse realmente com um problema urgente no banco, eles não iriam me procurar assim, apenas por e-mail. Vou ligar pra minha agência e saber o que está acontecendo de verdade.” Mas o bom senso parece um ideal vago e distante. Uma pequena voz, lá no fundo, martela e acaba dominando: “Mas se...” E num impulso, “mais forte do que eu”, a pessoa faz o clique fatal. Depois, diante de todos os danos decorrentes deste ato - a dor de cabeça de um computador inoperante, de um banco de dados perdido ou de sua conta invadida - o arrependimento, a culpa: “Que inferno, como sou idiota. Estava na cara que era uma mensagem falsa.”

Que força irresistível é esta do “mas se...”, qual é este canto de sereia? É que, se existe uma possibilidade, a menor que seja, eu não posso deixá-la escapar. Qual possibilidade? A de encontrar o grande amor perdido, a de evitar um prejuízo incontornável contra mim ou minha família, de receber o grande prêmio que mereço. Se não clicar posso perder tudo isto. É o mesmo impulso que leva pessoas a responderem aos telefonemas sobre falsos seqüestros de familiares, tão comuns hoje em dia, mesmo contra todas as evidências. O medo de uma perda irreparável. No fundo sabemos que a razão, que todos os bons argumentos, não são suficientes para garantir a segurança de uma decisão. Está sempre presente o “mas se...” e então, na dúvida permanente, é melhor agir para evitar a possibilidade de que aquilo escape. Mas, depois do clique, o que inevitavelmente se encontra? A punição pela ato irracional, o arrependimento, a frustração. A eliminação das ameaças, o grande amor, o grande prêmio,, era tudo uma enganação, uma mentira. Os prejuízos, estes sim, são reais. Não vale a pena ter ilusões, como a amorosa, na vida. A pessoa, depois, se fecha e passa a recobrir-se de cuidados para não cair novamente na armadilha. Quer encontrar uma forma de manter a mente sempre esclarecida. Procura por um modelo, uma receita que lhe garanta uma maneira certa de agir, de tomar uma decisão. Até que aquela pequena dúvida, aquela pequena possibilidade, sem querer, meio que pelos cantos, vai ganhando força e pronto. Vamos em busca de algo que nos renove a promessa. Uma nova crença religiosa que prometa o céu na terra, um livro de auto-ajuda com a receita para se ter o sucesso, um novo antidepressivo para nos dar uma vida cheia de alegria e sem efeitos colaterais, o namorado que jura que vai deixar de ser sacana. E, mais cedo ou mais tarde, novamente nos percebemos enganados, traídos em nossa boa fé. Somos feitos de trouxas por aqueles que se usam de nossa inocência para nos roubar. “Como alguém pode ser tão malvado, se utilizar da carência dos outros para lhes prejudicar?” “Por que você fez isto comigo, eu que acreditei tanto em você, eu que lhe dei o meu melhor?”

Normalmente os criminosos ou psicopatas são descritos pelos livros de psiquiatria como aqueles que não têm juízo moral ou aqueles que não têm arrependimento e empatia pelos outros. Mas eles poderiam, também, ser descritos como aqueles que sabem que a voz do “mas se...” é mais poderosa que as grades de segurança com as quais as pessoas se protegem. São aqueles, profundos conhecedores do querer humano, que ouvem e atendem a este chamado, a esta procura. Procura pelo encontro com o amor, com a felicidade? Não parece, pois o que os psicopatas, estes enganadores, trazem, na realidade, é apenas a frustração, a desilusão. Mas mantêm a dúvida, a possibilidade, nem que seja ao redimirmos ou eliminarmos todos os malfeitores, todos aqueles que nos atrapalham o caminho, de encontrarmos a felicidade. Os psicopatas mantêm, assim, a felicidade como uma promessa permanente, um porvir que nunca chega, nunca se realiza. Mas o que seria de nós em um mundo sem vilões, em um mundo onde não teríamos ninguém para colocar a culpa pela nossa infelicidade?

Enquanto quisermos acreditar que podemos nos afastar de todas as dificuldades e que, assim, encontraremos o nosso grande amor, nosso prêmio, voltaremos a cair no golpe da promessa falsa, seja pela internet ou por qualquer outro meio. Continuaremos apenas sonhando com a felicidade. A outra escolha seria saber que o engano não é uma dúvida, um “mas se...”, mas uma certeza. A felicidade, o amor, não vêm em um clique, prontos, de fora, dos outros, como um prêmio. Eles dependem do desejo de cada um, do duro mas libertador esforço de cada um em construí-los, em inventá-los.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

REMÉDIOS PARA UM “PLUS A MAIS”

A revista Veja, em uma recente edição, relatou a crise por que passa a indústria farmacêutica, pela falta de novos medicamentos que possam substituir, com igual rentabilidade, os atuais “supermedicamentos” cuja patente termina nos próximos anos. A matéria não esclarece os motivos pelos quais não podemos esperar o mesmo entusiasmo com novas medicações como o verificado nos últimos anos, por ocasião do lançamento de “modernos” antidepressivos, remédios para a impotência ou para se abaixar o colesterol. A revista relata apenas que, a cada ano, aumenta o investimento necessário para o desenvolvimento de um novo remédio, sendo esta quantia, hoje, por volta de 900 milhões de dólares. Conta, também, que o tempo para que um produto chegue ao mercado é cada vez maior. Com isto, o período de comercialização, antes do término da patente, tem diminuído, obrigando a indústria a batalhar por preços elevados para seus novos medicamentos. Em um primeiro momento, pode parecer difícil acreditar que o boom farmacológico esteja perdendo força, tendo em vista o aumento da demanda por medicamentos. Não a antiga demanda por tratamentos para as doenças tradicionais como o câncer, doenças degenerativas ou infecciosas. Normalmente, condições que, se não tratadas, trariam um prejuízo crescente ou levariam à morte a pessoa acometida. Esta demanda tem mantido um crescimento regular. A nova e imensa demanda por medicamentos, formada nos últimos anos, tem como alvo situações que até pouco tempo não eram consideradas como passíveis de tratamento pela medicina. Áreas antes dominadas por curandeiros ou por produtos que prometiam efeitos milagrosos. Podemos incluir nessa lista medicamentos que façam perder peso de forma consistente e permanente, remédios que promovam o crescimento de cabelos em carecas, remédios que aumentem o tempo até a ejaculação, remédios para incrementar a libido em mulheres, remédios que permitam que se trabalhe mais horas sem perda de concentração, remédios que aumentem a capacidade de se guardar informações ou que apaguem da memória lembranças indesejáveis, remédios que evitem os efeitos físicos do envelhecimento, remédios que façam os cabelos ficarem mais claros ou mais lisos, remédios que mudem a cor dos olhos, remédios para dores crônicas ou mesmo remédios para se parar de fumar, beber ou de se usar drogas. Podemos dizer que este novo mercado visa a oferta de medicamentos para condições que antes não eram consideradas doenças mas que, posteriormente, foram associadas a riscos para a saúde, como a obesidade e a depressão. Entretanto, a grande procura por estas drogas é a de ávidos consumidores que querem perder uns “quilinhos a mais” ou a daqueles que buscam afastar todo e qualquer sofrimento e tristeza de suas vidas e não necessariamente a de obesos mórbidos ou a de deprimidos graves. O enorme mercado, e a industria sabe disto (basta fazer um levantamento do número de usuários de medicamentos para impotência sexual que não apresentam nenhum comprometimento físico que justifique tal uso), é formado por pessoas que não estão doentes mas que buscam melhorar o seu desempenho ou a sua performance individual. Enfim, a demanda é por remédios que ofereçam “um plus a mais”. Os remédios para o tratamento das doenças tradicionais permitem que os doentes possam recuperar uma condição de saúde perdida. Têm o efeito de levar a pessoa de um estado de menos saúde para um estado de normalidade. Os remédios “plus a mais”, trazem a esperança de que uma pessoa saudável possa ficar ainda melhor. Seria o equivalente farmacológico das cirurgias plásticas. Sem entrar na questão do problema que esta nova demanda traz para o conceito de normalidade e saúde, pode-se afirmar que este é um mercado que de forma alguma parece estar em regressão. Então, por que a industria farmacêutica não tem conseguido oferecer produtos para atender com rapidez a esta demanda? Quem acompanha com freqüência o noticiário deve ter se deparado com relatos de medicamentos que, subitamente, são suspensos pelas autoridades reguladoras de saúde, seja no Brasil , seja no exterior. Normalmente, estas suspensões estão ligadas ao surgimento de evidências que trazem dúvidas sobre a segurança de uso de determinados medicamentos. Isto, por exemplo, ocorreu, recentemente, com o novo antiinflamatório Vioxx. Avaliações mais detalhadas dos estudos com essas drogas acabam por descobrir efeitos colaterais potencialmente graves e que não foram considerados por ocasião da autorização de comercialização. Provavelmente, este maior rigor esteja relacionado ao medo tanto da indústria, quanto das autoridades reguladoras, dos milionários processos movidos por pessoas que se sentem prejudicadas pelo uso de determinada medicação. O risco de suspensão ou mesmo de restrição de uso de um medicamento, além de uma maior possibilidade de ter seus novos medicamentos não aprovados por conta de um crescente rigor na avaliação de efeitos colaterais graves, talvez ajude a entender os maiores custos e prazos para o desenvolvimento de novos produtos. A indústria teve que ser mais criteriosa nos testes de segurança com as suas novas drogas. Este “pente-fino” faz com que muitas moléculas que pareciam promissoras em seus testes iniciais, acabem “morrendo na praia” ao apresentarem problemas de segurança nos testes clínicos. Com isto, o número de novas drogas aptas para entrar no mercado tem se tornado aquém da imensa demanda e do robusto investimento feito pelas empresas. Corre-se o risco de que a intensificação deste cenário leve, em um futuro não muito distante, a um aumento ainda maior nos custos para o desenvolvimento, quanto no preço final de novas medicações, a um menor investimento na criação de novas moléculas e, por fim, a uma escassez na oferta de novos medicamentos. Assim, teríamos um prejuízo não só na oferta de remédios para se melhorar a performance individual, mas também na de medicamentos para o tratamento das doenças tradicionais. Pode-se tentar entender como se chegou a tal situação, a partir da invasão da vida cotidiana pela medicina, que a demanda por medicamentos “plus a mais” tão bem exemplifica. Se a medicina, aliada à indústria farmacêutica, passou a dizer que determinadas condições e problemas rotineiros devem ser alvo de tratamento médico, esqueceu-se de dizer que isto teria um custo além do financeiro. Um conceito aprendido por qualquer estudante de medicina é que todos os remédios têm efeitos colaterais. Que toda medição tem, além de seus efeitos conhecidos, incontáveis outras ações desconhecidas. Mesmo um inocente copo de água com açúcar pode causar efeitos indesejáveis. Este conceito, ao trazer uma orientação para a prática médica, estabelece uma ética. Não existem remédios que são “mísseis com precisão cirúrgica” (sabe-se, também, o quão mentirosa e cínica é esta descrição em seu uso bélico). Considera-se, mesmo, que uma determinada substância só é remédio se tiver efeito colateral. Do contrario é enganação, charlatanismo. Esta ética foi omitida na invasão da vida cotidiana pela medicina. Talvez, este avanço só tenha sido possível porque se difundiu a crença que os novos medicamentos estavam livres de trazer prejuízos importantes e inesperados para seus usuários. No casamento da medicina com o mercado, prevaleceu a normas do último. Os medicamentos passaram a ser oferecidos como as empresas comercializam seus demais produtos. A divulgação é sempre focada nos benefícios, com frases de efeito e nunca nos possíveis prejuízos. A bulas, com as suas advertências, não se diferem muito das informações sobre precauções no uso de outras mercadorias, como consumir antes do prazo de validade, manter longe do alcance de crianças, etc. Enfim, se todos os cuidados forem tomados, não há como dar errado. Não existe espaço para o desconhecido que a lição médica formula sobre o efeito dos remédios, o fato de que nenhuma bula é capaz de conter todos os riscos. Se houvesse ocorrido o movimento contrário e a medicina, na sua união com a indústria, a tivesse contaminado com a sua ética, é possível que as empresas farmacêuticas não estivessem, agora, sendo objeto de processos de indenização e alvo de desconfiança. Não sei se assim, alertando sobre riscos potencialmente elevados e desconhecidos dos medicamentos, a indústria teria uma perda importante no número de usuários de seus produtos. Mas os consumidores seriam mais responsáveis ao saber que seu desejo tem um custo pessoal, além do monetário. A indústria farmacêutica não ficaria no lugar de inescrupulosa caçadora de lucros e os seus consumidores no lugar de vítimas inocentes. Talvez, não estaríamos vivendo a possibilidade de uma paralisação na oferta de novos medicamentos. Provavelmente, até mesmo muito da frustração e dos danos ambientais causados pela grande consumo atual pudessem encontrar outra direção se esta ética, que diz que nossas intervenções na natureza têm efeitos que nos escapam, infectasse o mercado. Acreditar que se pode melhorar e desejar mudar são legítimas necessidades humanas que nunca se esgotam. Buscar remédios para isto nos é fundamental, necessário. Entretanto, se esquecemos da ética médica de que um remédio nos ajuda, remedia, mas não nos livra de todos os males, corremos o risco de não termos mais remédios e sem eles, químicos ou não, morremos.