sábado, 23 de agosto de 2008

O ESPORTE FAVORITO DAS MULHERES

Uma piada conhecida diz que o esporte favorito dos homens é o futebol. E o das mulheres? Não, não é o vôlei. É o caratê. O cara “tê” cartão de crédito, carrão, grana no banco. Outra piada afirma que quem gosta de homem é gay. Mulher gosta é de dinheiro.

Apesar de taxá-las de interesseiras, nunca vi nenhuma mulher ficar indignada ao ouvir estas anedotas, como ocorre quando o alvo da brincadeira é a capacidade intelectual delas. Normalmente elas comentam que isto é uma bobagem, mas, no final, soltam um riso contido, porém malicioso e ameaçador, como quem, no fundo, concorda com tais afirmações.

É como se elas soubessem que apesar da aparência machista e preconceituosa contra as mulheres, o alvo de tais crenças, os grandes prejudicados, na verdade são os homens. Elas, talvez de maneira intuitiva, percebem que, assim, aprisionam os homens ao imaginário de que eles só valem pelo que têm. Deste modo, eles se sentem avaliados em uma escala que os qualifica de menos ou mais homem. Ser homem não é uma condição estanque e determinada, mas varia de acordo com o que se tem na vida.

Para conquistar uma mulher e se sentir homem, é preciso que eu tenha o corpo sarado, muito dinheiro ou sucesso. E se uma aquisição não for suficiente para a conquista, tenho que tentar outra. Os homens estão sempre querendo descobrir o que as mulheres querem que eles tenham para que elas possam se interessar por eles. Diante desta dúvida, estão sempre achando que seu caminhãozinho é insuficiente.

Podemos nos perguntar se as mulheres também não vivem o mesmo dilema, se elas não pensam no que devem ter para conquistar um homem.

No passado, o ideal de realização de uma mulher era encontrar um bom marido, ter filhos e criá-los com todos os cuidados possíveis. Para arrumar o seu homem, a mulher tinha de possuir os predicados de uma boa mãe e principalmente ser de boa família, o que, em outras palavras, queria dizer quem era o pai dela. Uma mulher era sem posses. Tudo o que tinha pertencia aos seus homens: pais, maridos, filhos. O sobrenome, os bens materiais, o sustento. Elas vivam não para ter ou conquistar, mas para cuidar dos outros. Se fugiam deste modelo e buscavam ganhar seu próprio dinheiro e fazer a sua própria vida eram, então, classificadas como putas. Talvez as piadas acima busquem isto. Dizer que as mulheres, ao serem interesseiras, são putas.

Hoje as mulheres não se importam tanto em ser associadas às meninas da vida. De alguma forma, até estimulam isto fazendo cursos de strip-tease ou de pole dance. Na sociedade em que vivemos, os papéis entre homens e mulheres estão cada vez mais parecidos, com mulheres desempenhando as mesmas funções profissionais que os homens, às vezes ganhando mais do que eles. Neste mundo, também as mulheres se perguntam sobre que atributos devem ter para conquistar o outro.

E toda promessa de realização que o mercado oferece tem exatamente este estímulo. Tenha juventude, beleza, saúde e sucesso adquirindo os nossos produtos. Assim, poderá conquistar a pessoa que ama e ser feliz.

Porém, repetimos esta receita de sedução e não conseguimos alcançar o resultado prometido. E, quando não conseguem fisgar a pessoa que querem, homens e mulheres caem em pensamentos obsessivos sobre o que lhes faltou para que desse certo o encontro. Ficam confabulando sobre o que o outro teria para conseguir conquistar a pessoa que você quer. Fantasiam um ladrão cheio de atributos, perfeito e pleno. E sentem-se menos homem ou menos mulher. Acreditam-se destinados ao fracasso amoroso, tendo que se contentar com as sobras que lhes aparecem. Na lógica do ter para ser amado, ficamos sempre com a sensação de que estamos aquém da felicidade.

Os atributos, o que nós temos, podem ser uma isca para atrair quem desejamos. Mas eles só funcionam enquanto estão distantes e ainda envoltos em uma atmosfera enigmática. Quando nos aproximamos da pessoa idealizada, percebemos que suas posses não eram bem o que queríamos, que elas não são suficientes para nos despertar paixão. Nada mais broxante do que alguém que fica o tempo todo exibindo para o outro as suas conquistas, crente que isto o fará amado. Quem é assim, quem acredita que seu valor está em seus pertences, só atrai aqueles que, no fundo, espera: pessoas interessadas apenas em usufruir ou, se possível, tomar os seus bens. Amor, paixão, nem pensar. Se perdem as coisas que têm, desaparecem, também, os que lhe são próximos. Então, vivem em constante paranóia, sempre desconfiados da real intenção alheia, sempre com a expectativa da perda.

No final, aqueles que mantêm a crença do ter para ser amados descobrem, indignados e surpresos, que a pessoa querida escolheu um outro “despossuído”. Como pôde me trocar por alguém mais pobre, burro, velho ou feio? Passam a desqualificar a amada dizendo que ela não os merecia, que agora descobriram que ela não prestava. Pura mentira. Não desistem da sua crença e insistem em descobrir a receita de sucesso do outro: ele deve ser bom de lábia ou de cama.

Os devotos do ter para ser feliz no amor passam a vida na insatisfação amorosa. Consideram que as pessoas com quem mantêm relacionamentos não são seus verdadeiros amores, e que ainda vão encontrar a sua cara-metade. Na velhice, ficam com a sensação de que determinada pessoa que perderam teria sido o seu grande amor, que deixaram escapar a oportunidade de ser feliz que a vida lhes deu. Mas, talvez, encontrem o amor desperdiçado depois da morte no paraíso. Neste modelo, só se pode ser feliz quando há uma distância permanente da pessoa desejada. Ou será num futuro que nunca vem ou num passado para todo perdido ou num além imaginário.

Mas poderíamos prestar mais atenção aos nossos próprios sentimentos e nos perguntar quando é que nos interessamos por alguém, como foi que ficamos apaixonados e amamos alguém. Será que foi pelo que esta pessoa tinha?

Quando estamos interessados em uma pessoa que nos parece cheia de qualidades, como torcemos e ficamos felizes quando encontramos pequenos defeitos ou deslizes nelas. Buscamos insistentemente uma falha, uma cicatriz, um cabelo branco, alguma coisa fora do lugar. Não amamos pessoas perfeitas ou ideais. Não amamos deuses ou deusas. Adoramos perceber uma carência, algum tormento ou mal-estar no outro.

Mas, aí, jogamos uma armadilha. Apontamos para a pessoa a falha que descobrimos nela. Se ela, deste modo, reage séria e envergonhada, se fica querendo nos agradar dizendo que vai se corrigir, cai automaticamente na lógica do ter, do sentir-se menos. Neste momento, o encanto se quebra. Entretanto, se respondemos de um outro lugar, se assumimos a falha, se não nos acanhamos ou até brincamos com ela, a pegadinha não funciona. Ficamos, assim, livres e sensuais aos olhos alheios.

Homens e mulheres são atraentes e podem amar se conseguem responder a pergunta do que eu sou não pelo que tenho.

O problema de dizer quero que gostem de mim pelo que eu sou e não pelo que eu tenho, é que nunca conseguimos responder com um mínimo de precisão a esta pergunta: quem eu sou? Toda vez que tentamos respondê-la, caímos na armadilha de nos definir pelo que temos. Qual o nome que tenho, qual a profissão ou quais qualidades ou defeitos possuo. E, em nenhum momento, nos convencemos da resposta. Fica sempre parecendo que algo ficou de fora, que não é bem isto. Nesta hora, poderíamos compreender que o mais próximo que chegamos da resposta ao que eu sou é percebendo que somos um enigma para nós mesmos. Que nenhum nome ou qualificação dá conta de nos explicar. De que nenhuma posse nos completa e nos define, pois, se não sei exatamente o que sou, também não sei com precisão o que quero. Desta maneira, conseguimos escapar do eu sou pelo que eu tenho, por aquilo que me é exterior.

Mulheres lidam melhor com a idéia de poderem ser não pelo que têm. Já os homens ficam mais perdidos e angustiados. Acham que, desta forma, sua masculinidade está em risco. Consideram que é melhor ser menos homem no modelo do ter do que não ser homem algum. Seriam mais livres e mesmo mais masculinos se arriscassem acreditar que ser homem não é algo definido, que demanda invenção. Que não são só as mulheres que têm de ser enigmáticas para conquistar um homem. Homens, também, têm de ser indefiníveis para despertar o amor de uma mulher. Têm que ter falhas, buracos, alguma inocência, alguma infantilidade.

Não tendo uma resposta precisa para o que somos, conseguimos fugir de qualquer tentativa de nos fazer objetiváveis, de sermos aprisionados em uma definição dos outros e perdermos a nossa liberdade e nossa capacidade de sedução. Se podemos nos dizer humanos, se temos algum valor, é por termos um desejo sempre presente. Do contrário, viramos meros objetos desprezíveis.

E o encontro feliz entre duas pessoas só ocorre se as duas se permitirem estar e perceber o outro no lugar de enigma.

Afinal, o que é amar, se não a possibilidade de vivermos uma experiência misteriosa, que nos desloque da realidade, da norma, do convencional. Um encontro que, assim, nomeamos de mágico.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O MÉDICO-DEUS

Na semana passada, li no jornal Folha de S. Paulo, dois comentários feitos por dois colegas médicos que me provocaram algumas questões.

O primeiro foi feito pelo ministro da Saúde que, feliz com a diminuição no número de acidentes de trânsito após a vigência da lei seca, afirmou que punição funciona mais que educação. Concluiu dizendo que a sociedade precisa de um pai, no caso, o Estado.

Nos últimos textos que postei, tentei expor algumas razões pelas quais acredito que o Estado é completamente incapaz para administrar a liberdade das pessoas, só entendendo o lugar paterno por meio do autoritarismo. O Estado é pai porque detém as forças de repressão, pode lhe dar uma cacetada caso você faça algo que ele julgue errado. Não é pai porque tem a sabedoria para manter a boa convivência entre seus filhos. Este conhecimento, sabemos, é impossível. Então, só restam a ameaça de punição e o medo. E esta parece ser a conclusão do ministro sobre como conseguir civilidade entre as pessoas.

Não me assustaria se, diante do exemplo de tamanha autoridade, registrássemos um aumento no número de pais que castigam fisicamente seus filhos em nome da boa educação. Quanto retrocesso. Como querer enfrentar os problemas de hoje com soluções do passado pode nos ser prejudicial ou mesmo fatal. Ministro, não é de pai que precisamos, é de responsabilidade. E ela só vem quando sabemos que temos que nos virar sozinhos na vida. Que nenhum outro nos garante segurança ou felicidade.

O segundo comentário foi feito por um professor de medicina da USP. Ele afirmou que quando consegue curar um paciente com câncer e, assim, salvar-lhe a vida, sente-se como um Deus. Tem, então, que se beliscar para se perceber humano.

É provável que o professor tenha feito esta declaração com a intenção de demonstrar humildade. Mas muitos colegas e mesmo pacientes têm fé nesta crença: o médico-Deus. E, em vez de nos beliscar para nos vermos como humanos, talvez bastasse a nós médicos apenas ser um pouco mais críticos.

Não acredito que médicos salvem vidas. A batalha contra a morte é, desde sempre, perdida. Mas o exercício da medicina pode prolongar a vida e promover alívios para o sofrimento. E estas possibilidades, por si, já valem uma vida.

Mas o problema dos médicos-deuses é criar a expectativa de que a medicina poderá nos livrar de todos os sofrimentos e da morte. Eles difundem a crença de que é possível um conhecimento total sobre o corpo humano e aquilo que o condiciona. Se algo deu errado, foi por falta de conhecimento. Não há lugar para o desconhecido, para o acaso na matemática dos médicos infalíveis. Eles opõem conhecimento total à ignorância e vida à morte. Uma derrotará a outra.

As modernas técnicas de avaliação do corpo humano, a possibilidade de diagnósticos mais precisos realizados por máquinas cada vez mais sofisticadas (e caras) e a promessa de uma prática totalmente baseada em evidências numéricas científicas alimentam ainda mais a ideologia de uma medicina que eliminará o desconhecido e a morte.

Médicos, como no passado se ocuparam os sacerdotes, estão encarregados de dizer o que é certo ou errado para se ter uma vida feliz. Não fume, alimente-se bem, faça exercícios: estes são os mandamentos do homem moderno. Uma vida boa é uma vida saudável, regrada. Só que, agora, não é a autoridade religiosa que dita as regras, mas médicos que se dizem portadores das verdades científicas.

O médico-Deus sustenta a idéia de que só seremos felizes se acabarmos com todas as dores e com a morte. Como isto é impossível, seus pacientes estão condenados a uma vida insatisfeita, esperando uma felicidade que nunca virá.

E apesar de todo apelo à saúde, de que se sigam corretamente todas as recomendações dos doutores do bem-viver, as pessoas continuam e continuarão a adoecer, novas doenças a surgir e mortes a ocorrer. E, se não existe acaso, então a culpa por isto é da medicina e dos médicos. Se não o têm, deveriam ter o conhecimento necessário, cumprir a promessa feita.

Deste modo, o exercício diário da medicina tem se tornado cada vez mais estressante para os profissionais. Se acaso algo não der certo, poderei ser processado. A responsabilidade está toda com o médico. Não se informa aos pacientes e nem à sociedade que todo tratamento tem uma dose de risco, de efeitos indesejáveis desconhecidos, que mesmo o médico mais estudado e habilitado não está livre de ter insucessos e que os dados científicos não são verdades definitivas. Um acaso que a própria estatística considera, ainda que de forma atenuada, uma vez que ele não pode ser dimensionado com precisão. Provavelmente se tema que estas informações afastem a clientela e diminuam os ganhos.

Os pacientes não querem saber que têm a sua cota de responsabilidade ao escolher determinado médico e determinado tratamento. Se usam serviços públicos de saúde, são responsáveis pelos políticos que elegem. No fundo, querem, também, ignorar o desconhecido, o acaso. Se der errado, tenho sempre alguém para culpar. E como os médicos não são deuses, não são senhores do destino alheio, em algum momento vão falhar e serão, então, denunciados. Como no caso do ministro em relação aos motoristas, acredita-se que médicos só funcionem bem se estiverem sob constante ameaça de punição. Um advogado ao lado talvez venha a identificar mais um médico do que o velho estetoscópio no pescoço. Prefere-se pagar este preço a frustrar a expectativa divina dos clientes.

Vender a idéia de um médico-Deus é vender uma ilusão. E o destino de toda ilusão é ser desmascarada. No mundo das doenças e seus tratamentos , promessas enganosas há muito são devidamente nomeadas: charlatanismo. Um medicina sustentada em crenças ilusórias pode estar condenada a desaparecer.

Mas a medicina pode seguir outro caminho, um que lhe seja mais próprio. Podemos fazer valer uma afirmação que desde os tempos de estudantes de medicina ouvimos e que erroneamente nos parece desgastada e algo ridícula: A medicina é uma arte. Em vez do médico-Deus, o humano e falível médico-artista.

O médico-artista, mesmo que realize cirurgias ou outros procedimentos, é clínico por excelência. Acredita que cada caso é um caso (outra importante frase do repertório médico que necessita ter seu valor posto em prática), que o dia-a-dia e a experiência clínica é o que contam na hora de tomar uma decisão.

No futuro, ao contrário do que se imagina, é provável que os médicos mais necessários e modernos sejam aqueles habilitados na prática clínica e não os pesquisadores das últimas evidências científicas ou os que tenham acesso aos mais avançados e caros recursos tecnológicos.

Se acreditarmos que um bom tratamento deve-se principalmente à quantidade de informação científica armazenada, à capacidade de cruzar informações e à precisão matemática na realização de procedimentos, os médicos podem, assim, ser substituídos, com muito mais eficácia, por computadores e robôs.

O médico-Deus quer descobrir um padrão geral, uma receita infalível de como curar. E os pacientes, nestas condições, são vistos como números equivalentes, como probabilidades gerais e não como casos particulares. Mas, no fundo, o médico-Deus não tem valor. O valor está no conhecimento, nas fórmulas prontas, e qualquer um pode ter o mesmo conhecimento, desde pacientes, que podem se informar via internet, até uma máquina. Médicos-deuses são descartáveis.

O médico-artista tem uma sabedoria sobre o singular. Sabe apostar em um tratamento específico para cada paciente, a cada momento. Ele usa da sua experiência e do conhecimento adquirido mas inclui também o acaso, o desconhecido. Reconhece que uma decisão envolve algo que está fora da razão, uma sensibilidade, uma intuição. Quando obtém sucesso, ele não sabe explicar exatamente o porquê disto. Tem o entendimento de que o mesmo tratamento para outro paciente com um diagnóstico igual e nas mesmas condições pode não funcionar.

Em vez de temer e se acabrunhar frente ao impossível da morte e de tudo saber, o médico pode fazer do acaso um aliado. E é possível que, apesar de surfar sobre o desconhecido ou talvez até por isto, ele, para a nossa surpresa, possa acertar mais do que o médico medroso que quer uma receita do que é certo fazer.

O médico-artista não fica na defensiva, tem prazer e alegria pela clínica, pelo exercício diário da medicina e pelo contato com os pacientes.

Assim como os artistas da pintura, da literatura ou da música, o médico cria algo que não existia no mundo. Ainda que de forma precária e temporária, ele realiza um intervenção que muda um rumo que parecia determinado pela natureza. Inventa uma novidade ao remediar um sofrimento, tratar uma doença, prolongar uma vida. Mais do que salvá-la, médicos podem emprestar à vida uma beleza fugaz.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

POR QUE O ESTADO NÃO CUIDA BEM DAS PESSOAS E O EXEMPLO DE ROSKILDE

O Festival de Roskilde, na Dinamarca, assim como o de Glastonbury, no Reino Unido, é considerado um dos maiores eventos de música da Europa. Este ano, na companhia de outras 70 mil pessoas, tive a oportunidade de acompanhá-lo no início de julho.

Além da satisfação de poder assistir a ótimos shows, de rock às últimas novidades em música eletrônica, com atrações de vários países, incluindo a brasileiríssima Orquestra Imperial, alguns fatos me chamaram a atenção.

Ao contrário do que estou acostumado a ver em eventos semelhantes no Brasil, não encontrei legiões de seguranças de terno, gravata, óculos escuros e comportamento hostil vigiando para que as pessoas não se excedessem em sua diversão. Não houve revistas detalhadas para a detecção de armas ou outros objetos proibidos. O festival tem pouquíssimas regras ou restrições. Na verdade, somente uma recomendação: cuide de si e, se possível, de quem estiver perto de você.

E este era o espírito que a própria organização do festival procurou passar. Em vez de seguranças, havia gentis voluntários da cidade próxima, homens e mulheres, jovens e idosos. Eles cuidavam apenas para que as pessoas tivessem as informações necessárias, como a localização de determinado palco. Alguns observavam a multidão tentando perceber aqueles que, aparentemente, tinham exagerado no consumo de álcool ou outras substâncias para, a princípio, lhes oferecer água. Havia, também, médicos e enfermeiros que percorriam o evento, tentando detectar alguma eventual necessidade de seus serviços. Se encontravam alguém deitado no chão, por exemplo, se abaixavam tranquilamente e perguntavam se estava tudo bem. Sendo a resposta positiva, continuavam sua caminhada. Não se tinha a sensação, em nenhum momento, de se estar sendo vigiado e nem de que, caso algo de errado fosse feito, alguém viria para lhe punir. O outros não o ameaçavam, apenas se divertiam e cuidavam de você.

E com toda esta liberdade, para grande espanto dos defensores da tese de que para se ter segurança são necessários vigilância e controle rigorosos, não vi uma briga sequer, nem soube de roubos ou outros tipos de agressão, nem de mortes por overdose ou por afogamento no grande lago que ficava no meio do festival. Não assisti a qualquer comportamento minimamente hostil, como alguém levantando a voz para outro que eventualmente tivesse furado a fila. Até os banheiros eram inacreditavelmente limpos para um evento com dezenas de milhares de pessoas. Era possível perceber, a todo momento, uma preocupação de não deixar que a minha diversão fosse prejudicial para o outro e, de forma inversa, uma tolerância para que a diversão alheia não representasse um problema para mim. E estes cuidados de forma alguma comprometeram a alegria dos participantes.

Pode-se argumentar facilmente que esta realidade de responsabilidade individual ocorre porque a Dinamarca é um país com uma população altamente civilizada, educada, rica e economicamente igualitária. O preço disto seria uma vida tediosa com altos índices de suicídio.

Quanto à segunda afirmação, sobre como é chato viver em um país de pessoas cordiais entre si, não sei se posso concordar, até pelo vi em Roskilde: os dinamarqueses se mostraram muito mais animados e mesmo mais criativos no figurino do que muitas platéias do nosso país tropical. Quanto aos índices de suicídio, pelo que sei, não existe consenso se eles seriam realmente maiores nos países nórdicos. Pode ser mais um exemplo do antigo mito que associa civilização à tristeza ou alegria ao caos.

Em relação à crença de que os dinamarqueses se comportam de forma responsável, não necessitando serem tão controlados como os habitantes das regiões quentes e pobres do planeta , por terem um maior desenvolvimento econômico e educacional, acho importante fazer alguns comentários.

Se não levarmos em conta os antigos e desacreditados preconceitos sobre raça superior ou clima mais adequado, talvez a crença acima ainda se apóie em argumentos difíceis de se sustentar, a não ser dogmaticamente. O que fica subentendido é que pobres e pessoas de baixo nível escolar precisam de mais vigilância, de mais polícia.

Não convence tampouco a idéia de que os europeus sejam mais civilizados porque têm séculos de desenvolvimento e nós começamos nossa história recentemente. Assim estaremos sempre atrasados pois eles serão sempre mais velhos do que nós. Além disto, nossos antepassados, sejam eles africanos, índios ou europeus, estão no mundo há tanto tempo quanto os de qualquer outro lugar. E países até mais novos que o Brasil, como a Nova Zelândia, confiam mais que nós na liberdade de seus cidadãos. Só podemos sustentar o pensamento de um maior desenvolvimento cultural se acreditarmos que uma cultura é superior à outra.

Aceitar que dinamarqueses, ao contrário dos brasileiros, possam ir a shows sem seguranças autoritários ou mesmo usar o metrô sem ter que passar por catracas de controle da compra de bilhetes, é assumir que nós, brasileiros, somos inferiores e mais selvagens que os descendentes dos vikings.

Funcionamos assim, maltratados pelos governantes e ninguém comenta o porquê disto, como se fosse uma verdade que todos acreditamos mas não podemos dizer publicamente. Nos organizamos e vivemos tendo como base os piores preconceitos. Verdades que não se sustentam diante do menor debate inteligente.

Mas a realidade comprovaria o preconceito velado. O brasileiros adoram burlar as leis. Tire as catracas de controle do metrô para ver quantas pessoas pagariam a viagem. Não coloque seguranças abrutalhados nas festas para ver quantas brigas ocorreriam.

Não temos razão última nenhuma para acreditar na menor civilidade dos brasileiros a não ser a nossa vontade cega de acreditar nisto. E a nossa expectativa gera a realidade. Se achamos que somos selvagens e bárbaros, assim nos comportamos. Com medo dos brasileiros potencialmente criminosos, cercamos nossas casas de cercas elétricas e câmeras . A paranóia demanda um outro que confirme a expectativa de violência. Quanto mais nos fecharmos dentro de muros, seguranças e carros blindados, mais bandidos estaremos esperando.

Da mesma forma dinamarqueses, dos quais se espera civilidade, podem fazer festivais de música sem controle policial e, ao mesmo tempo, sem violência.

Na clínica, esta condição é facilmente percebida. Pais que tratam seus filhos como irresponsáveis, que os cercam de cuidados e vigilância, acabam tendo filhos que se comportam exatamente dentro desta expectativa. Crescem inseguros, precisando sempre de um outro que os controle e diga o que é certo ou errado. Se deixados sozinhos, acabam fazendo bobagens. Os filhos se tornam eternas crianças dependentes.

Não seria esta a expectativa criada pela onda recente de maior controle estatal e tolerância zero? Que as pessoas são irresponsáveis e precisam da tutela do Estado? Somos crianças arteiras em potencial, prontas a fazer besteiras caso o Estado não nos monitore.

Mas por que devemos acreditar que o Estado é uma entidade adulta e esclarecida pronta a nos proteger de nosso descontrole? Os que clamam pelo rigor estatal deveriam lembrar que o Estado é um organismo abstrato que, na prática, é composto por pessoas sujeitas às mesmas imperfeições e vícios que nós. De onde tiramos a idéia que policiais ou políticos possam estar mais preparados que nós para cuidar de nossa liberdade?

Se abrimos mão da responsabilidade pela nossa liberdade individual e a entregamos para o Estado, o que vamos encontrar é uma maior corrupção, truculência e violência por parte deste. É o efeito colateral das leis secas. Mas o maior problema deste tratamento para a liberdade do mundo de hoje é a sua falta de eficácia ao longo do tempo.

O remédio das leis secas tem como princípio ativo a idéia de que para nos controlarmos precisamos de proibições e de um outro que nos vigie. É um remédio antigo contra o qual já se desenvolveram vírus altamente resistentes. É possível, até, que o vírus se alimente e se fortaleça utilizando-se do próprio medicamento.

A história tem mostrado a falência da crença em um outro que nos sirva de modelo do que é certo ou errado, de um outro que nos proteja, nos controle e nos puna caso nos desviemos do melhor caminho. Faliu a idéia de representantes de Deus, de papas, de reis e outras autoridades sábias e infalíveis. De quantos nazismos ou stalinismos precisamos para nos certificar disto? No que deu a promessa de segurança internacional das guerras contra o mal promovidas pelo governo Bush? Precisamos logo nos convencer de que estamos sós para cuidar de nossa liberdade. A responsabilidade pelo que fazemos, daquilo que dá certo ou errado em nossas escolhas, pertence apenas a nós mesmos. A humanidade é uma família sem pai. E, talvez, seja este o seu momento de maturidade.

Voltando ao exemplo dinamarquês, alguém pode argumentar que na Dinamarca, com toda a sua civilidade, também se aplicam leis restritivas à liberdade individual, como penas severas para motoristas alcoolizados.

Concordo. Mesmo países que antes defenderam a liberdade, como os EUA, hoje se fecham no medo, com cada vez mais limitações internas e também ao que vem de fora. Americanos desconfiam dos muçulmanos, os europeus desconfiam dos imigrantes. E ambos temem o descontrole de seus cidadãos, principalmente o dos mais jovens, e pedem um maior rigor do Estado. E corremos o risco de receber, por absoluta idiotice, a mesma cacetada na cabeça que nos foi dado num passado não tão distante.

O Brasil já está calejado na convivência com um outro diferente. Não existe a menor homogeneidade entre os brasileiros. Já experimentamos interpretar isto pelo viés da paranóia, de que devemos sempre desconfiar do outro. Não deu certo. Com todos os muros e truculência policial, vivemos perseguidos pela violência. A questão não é aumentar ainda mais os muros, a vigilância.

Podemos tomar a dianteira e, em vez de um país atrasado, usarmos a nossa experiência para demonstrar ao mundo a possibilidade de confiar na liberdade do outro que nos é diferente. De aceitarmos que o Estado não sabe o que fazer com a liberdade que entregamos a ele. Que é melhor, como na recomendação de Roskilde, que cuidemos nós de nós mesmos.

Sei que está fora de moda, mas tenho uma utopia. Que, de repente, de forma meio desapercebida, no Brasil, as pessoas comecem a abrir mão de cercas e câmeras, de vidros escurecidos nos carros e de seguranças públicos ou particulares. Quem sabe alguns cheguem à ousadia de caminhar sem medo pelas ruas. Se não esperamos bandidos ou adversários, para nossa surpresa, podemos encontrar amigos em nosso desamparo de um outro que nos proteja.