quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A VIAGEM DA BELA JUNIE

Christophe Honoré talvez seja o diretor de cinema em atividade que mais questiona e investiga as particularidades dos relacionamentos amorosos na atualidade.

Em seu último trabalho, A Bela Junie, podemos acompanhar as desventuras de jovens estudantes e professores na busca de um amor. Ao terminar o filme, os espectadores mais românticos podem sair do cinema com uma certa melancolia. Os mais apaixonados personagens, aqueles que defendiam uma união sincera entre os amantes, aqueles que não abriam mão de encontrar alguém para quem devotar e receber um amor exclusivo e pleno, têm destinos trágicos e solitários. O ideal de amor não se realiza, a infelicidade permanece. Mas os práticos, aqueles que aceitam que seus parceiros sejam infiéis, que os relacionamentos sejam curtos e superficiais, nada muito além de sexo, também não parecem felizes em sua resignação.

Será mais desejável reconhecer que a felicidade amorosa não existe, que ela é uma ilusão boba, que não devemos perder tempo com sonhos irrealizáveis e apenas se contentar com as pequenas satisfações, em garantir uma trepada, um prato cheio de comida ou uma adrenalina qualquer? É difícil olhar para a bela Junie, sozinha em sua viagem no final do filme, e não ser solidário com a sua busca de amor. Por mais que a realidade pareça dizer o contrario, é como se, ao abrir mão disto, estivéssemos abrindo mão de nós mesmos, de que a vida tenha qualquer valor, razão ou encanto de ser vivida. Como se aqueles que desistiram da procura amorosa fossem mortos vivos, alguém que apenas cumpre tabela à espera de uma morte que não deve tardar. Sabemos que, no fundo de todo resignado, esconde-se uma Junie.

Um paradoxo humano estranho. Por mais que percebamos que encontrar um outro que nos traga felicidade é impossível, que os amores mais cedo ou mais tarde podem passar, que ninguém nos é 100% fiel, não conseguimos desistir do desejo de realizar este impossível.

O trabalho de Honoré trata justamente deste conflito. É interessante que o roteiro do filme tenha se baseado em um livro do século 17, La Princesse de Clèves, de Madame de La Fayette. Isto demonstra como o dilema amoroso sempre perseguiu homens e mulheres. Mas A Bela Junie consegue ser contemporâneo ao colocar questões e impasses que a quebra de valores e padrões rígidos de comportamento trazidos pela modernidade provocou nos relacionamentos afetivos.

Até pouco tempo atrás , e mesmo para muitos hoje em dia, os relacionamentos afetivos tinham um componente amoroso e outro de obrigação social. Na maior parte das vezes, dissociados um do outro. Namorava-se e se casava com alguém por um dever em relação à família e à sociedade, mas ficava-se com a impressão de que esta obrigação impedia a pessoa de encontrar o seu verdadeiro amor.

Os práticos daquela época diziam que com o tempo se aprendia a gostar e respeitar aqueles que o dever pôs em nosso caminho. As paixões eram consideradas loucuras de pessoas imaturas ou pertencentes apenas às obras de ficção. Os compromissos sociais impediam a realização afetiva plena. O amor era cerceado por inúmeras proibições. Aqueles que se entregavam às paixões, como alguns poetas, deveriam ter uma vida degradada e breve.

Mas, nas últimas décadas, as limitações foram caindo por terra. Aprovação do divórcio, independência econômica dos parceiros, separação total de bens, casais que apenas moram junto sem oficializar o relacionamento, métodos anticoncepcionais, sexo sem compromisso, aceitação de uniões do mesmo sexo. É como se a casca fosse caindo e hoje tivéssemos que nos defrontar com o osso das relações amorosas. O que fazer agora que nada me impede de ser feliz com o meu ou minha amada?

A questão principal de A Bela Junie não é sobre o relacionamento entre professor e aluno, um amor proibido. Ao contrário, o que se questiona, o que nos atormenta e provoca, é o que fazer quando temos a liberdade para amar. Pode ser professor com aluna, homem com homem, mulher com mulher, velha com novo, rico com pobre.

De repente as famílias de Romeu e Julieta fizeram as pazes e os apaixonados amantes não precisam mais se matar para realizar o seu amor. Terão agora de bancar e sustentar a sua afeição, já que nada exterior, nenhuma desculpa os afasta desta felicidade. Provavelmente, assim que Romeu chegar bêbado em casa e só prestar atenção no jogo de futebol, Julieta passe a sonhar com o passado de brigas familiares ou comece a desconfiar que se enganou, que talvez Romeu não seja o homem da sua vida.

A saída mais frequente a que temos assistido diante da ausência dos culpados pela nossa infelicidade amorosa é dizer que o próprio amor é uma ilusão. Esta seria a verdade prática dos nossos tempos. Em essência, ela não difere da praticidade anterior. Os práticos atuais são os resignados do amor. É a realidade que se tenta impor agora. Os moralistas de ontem viraram os cínicos e céticos de hoje. Não se diz mais que a paixão é uma deformação do diabo que perturba a boa ordem familiar, mas uma patologia ilusória que vai contra a natureza animal humana preocupada apenas em espalhar genes egoístas. Do mito religioso passamos ao mito biológico para justificar o nosso lugar de eternos mal-amados.

O amor continua sendo visto como uma coisa para os fracos, para os acometidos pelo sofrimento de se iludir.

Mas talvez possamos dar ao dom de iludir outro lugar que não seja o do pecado, o do erro ou da doença. Em vez de percebermos as fantasias como engano, podemos interpretá-las como condição, como necessidade humana básica. Religiões, ciência, amores, tudo isto são ilusões criadas pelo ser humano na tentativa sem fim de dar conta de um mundo alheio a qualquer sentido.

Nos relacionamentos amorosos, para que o conto de fadas continue depois que as bruxas forem derrotadas, é necessário continuar escrevendo a ficção.

Junie fugiu acreditando que seu querido professor jamais poderia amá-la como ela gostaria. Que ele, no fundo, era tão enganador quanto os outros rapazes. Mas ela poderia tomar um rumo diferente: abandonar seu barco e voltar para o seu professor. Deveria apostar que se pode fazer alguém ser o seu amor, que príncipe ou vilão são invenções ou expectativas criadas. Que mudando de expectativa se pode mudar aqueles que amamos. Que ninguém é pronto no mundo, que estamos todos permanentemente à procura do significado de nós mesmos. Podemos oferecer e insistir em significações ou interpretações novas para aqueles que amamos. Uma possibilidade de perceber quem se ama para além do eixo perfeição/imperfeição, que se veja o outro como um mistério permanente e encantador.

O nosso amor não é a nossa cara-metade perdida no mundo à espera de que uma sorte ou ventura qualquer a coloque em nosso caminho. Amor não é descoberta, mas é criação. Não é espera, nem dádiva, mas ação, persistência. Os que aguardam seu verdadeiro amor chegar estão sempre insatisfeitos com aqueles que encontram na vida. Carregam permanentemente a dúvida se determinada pessoa é a certa. Guardam a esperança de que exista alguém melhor, mais interessante, esperando ou procurando por elas. Para realizar um amor, é possível que tenhamos de descobrir que o que ficou de fora não existe, que podemos contar somente com aquilo que é inventado. Não há amores perdidos, mas se pode ganhá-los se apostarmos em sua criação.

Bons amantes devem ser bons ficcionistas.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O HOMEM BOM

Em um debate na campanha presidencial norte-americana de 2004, perguntaram aos candidatos George Bush e John Kerry o que eles pensavam sobre a legalidade do aborto. Bush, em tom decidido, disse que respeitava as leis que permitiam esta prática em seu país, mas concluiu afirmando sua opinião contrária ao aborto devido às suas crenças e valores religiosos. Já Kerry, um tanto titubeante, respondeu que defendia a legalidade porque ela era democrática ao permitir que tanto aqueles a favor como os contrários à interrupção da gravidez pudessem agir de acordo com as suas consciências. Entretanto, de maneira diversa do seu concorrente, o candidato democrata se esquivou de dar sua opinião pessoal sobre o aborto, se era favorável ou não. É provável que tenha se comportado assim para não perder votos no temido eleitorado conservador americano.

Independente de estar certo ou não em suas crenças, George Bush saiu do debate com uma imagem de firmeza e segurança, e Kerry como alguém fraco e sem confiança em si próprio. Por fim, os eleitores, em sua maioria, acabaram se decidindo por Bush. E o mundo sofreu mais quatro anos com seu desastroso governo.

Lembrei desta história depois de assistir ao filme O Homem Bom, do diretor Vicente Amorim e que está atualmente em cartaz. No filme, um professor universitário, bom pai e bom filho, perde a oportunidade de ajudar um amigo judeu de escapar da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Mesmo não concordando com os princípios políticos de Hitler e seus companheiros, ele aceita promoções oferecidas pelo partido nazista. Inicialmente não acredita (ou não quer saber) na possibilidade de que um mal maior possa vir do entusiasmado movimento que prometia colocar ordem, trazer segurança e recuperar o orgulho da Alemanha. No final, tentando encontrar o amigo feito prisioneiro, o bom professor termina por se deparar com a verdade dos campos de concentração. Surpreso e tocado conclui: é real!

O que une a lembrança do debate na eleição americana e o filme de Amorim é que nos dois casos algo deixou de ser dito ou feito em nome de se manter uma boa imagem. John Kerry não quis causar uma má impressão no eleitorado conservador, enquanto o professor não quis queimar o seu filme junto aos seus benfeitores nazistas. Um achava que, assim, poderia ganhar as eleições, e o outro pensava em receber promoções.

O homem bom talvez tenha outro compromisso que não seja o de manter uma boa imagem em seu meio social, em ser um cidadão exemplar. Seu compromisso maior é com algo íntimo, algo que percebe como verdadeiro, mesmo que seja contra a verdade corrente na sociedade em que vive, mesmo que se descubra solitário em seus questionamentos, mesmo que isto possa lhe trazer riscos, que possa lhe causar prejuízos econômicos e profissionais ou levar à separação familiar. Ele, por mais que a princípio tente não saber da verdade que lhe persegue, acaba por reconhecê-la e paga o preço de defendê-la. É um homem que não engana a si próprio. Mais do que salvar sua pele, o homem bom vive por sua honra pessoal. Sem isto, percebe que a vida humana não tem valor, que se é apenas um boneco que segue as massas, um maria vai com as outras. Quem assistiu ao belo filme alemão A Vida dos Outros pode entender melhor o que é ser um homem honrado, um homem bom.

Facilmente identificamos o que deveria ter sido feito, qual causa boa defender diante dos regimes autoritários do passado. Sabemos que os homens bons foram aqueles que combateram os nazistas, os soviéticos ou as ditaduras militares da América Latina.

Mas e hoje, onde podemos perceber a necessidade de pessoas honradas?

Talvez pudéssemos começar pela política. Homens e mulheres que contrariem verdades estabelecidas, que enfrentem o medo do suposto conservadorismo do eleitorado. Quantos políticos brasileiros, por exemplo, têm a coragem de vir a público defender o aborto, a descriminalização do uso de drogas ou dizer que não acredita em Deus? Poucos, a maioria está preocupada em manter a sua pretensa boa imagem.

Não sei se o eleitorado julga um político por aquilo que ele diz ou defende. É provável que valha mais a atitude. Ninguém gosta de quem fica em cima do muro. Os conservadores parecem mais sinceros na defesa de seus princípios, se mostram mais confiantes e não têm vergonha de dizer publicamente o que pensam.

Os liberais, os que praticam uma vida diferente dos valores morais tradicionais, parecem indecisos e envergonhados de suas atitudes. Quando tentam apoiar uma causa contrária ao conservadorismo, usam de argumentos indiretos, como as vantagens econômicas de se legalizar o aborto, e nunca uma afirmação direta do seu valor ético. Por escamoteá-las, passam a impressão de que suas práticas e crenças são erradas e pecaminosas.

E se os políticos acreditam e esperam um eleitor retrógrado e conservador, é desta maneira que as pessoas vão se comportar, até pela falta da opção de uma outra expectativa.

Deste modo, vamos assistindo ao crescimento de bancadas religiosas e outros grupos moralistas. Governantes de esquerda que, no seu íntimo, não acreditam em Deus, fazem concessões conservadoras para ficar bem com o eleitorado. Dia após dia, leis restritivas à liberdade individual são criadas em nome da saúde e da segurança coletiva, tudo na maior normalidade. Até que um dia, novamente, a dura realidade caia sobre as nossas cabeças. Espero que neste momento tenhamos, pelo menos, a dignidade de não se permitir o pior e o mais inútil dos pensamentos: poderia ter feito e não fiz.