sexta-feira, 31 de julho de 2009

ENCONTROS E DESENCONTROS : SER AMANTE NÃO É A MESMA COISA QUE SER AMADO

Toda vez que nos deparamos com alguém que nos atrai, alguém que nos desperta interesse, somos geralmente tomados pela dúvida: será que esta pessoa também gosta de mim?

Diante deste questionamento ficamos inseguros e, nesta condição, é muito difícil que o encontro com a pessoa querida ocorra. É comum no relato de quem conseguiu formar um casal que o encontro entre os dois se deu de maneira inesperada, por acaso, quando não havia expectativas ou cobranças, quando se estava desarmado.

Quando estamos armados da dúvida sobre a correspondência ou não do amor de quem supomos querer, ficamos no lugar de carentes. A pessoa carente tem a crença de que o seu amado tem as características necessárias para lhe trazer a satisfação, a felicidade plena. Enfim, o carente idealiza o outro como aquele que lhe trará a completude. A sua expectativa na relação é ser completado pelo outro.

Para conseguir ser amada, a pessoa carente vende a esperança de que só ela também pode completar o amado, que só ela realmente o ama, que foram feitos um para o outro. Cobra que o outro reconheça isto, como se o amor fosse uma troca na mesma medida. O relacionamento, então, quando ocorre, se dá pelo medo de perder o outro, por uma busca de segurança, como uma obrigação ou um dever.

Uma relação que se sustente no temor e na cobrança pode até trazer uma promessa de conforto e segurança para o casal, mas na prática é vivida de forma bastante conflituosa. Normalmente em um casal assim, um ocupa o lugar de carente e o outro o de amado. As posições podem se inverter com o tempo, mas sem uma coincidência temporal dos lugares. Como em uma disputa de gato e rato, quando se é amado não se ama e quando se ama não se é amado.

Para manter este jogo, é necessário que a pessoa amada permaneça no seu lugar idealizado, sempre superior e distante. O carente só sustenta seu amor enquanto é desprezado pelo outro. Diante de qualquer ideal, como o da pessoa amada que nos completaria, ficamos no lugar de defeituosos, de menos, de insuficientes, de errados, de pecadores. A pessoa carente se coloca em uma lugar de inferioridade e justamente neste lugar que é reconhecida e tratada: como uma porcaria, como alguém sem sensualidade ou capacidade de sedução, alguém que não merece ser amado ou que se está junto apenas por obrigação ou dó.

Se por alguma razão o carente percebe que o amado também o ama, que o outro lhe disse sim finalmente, passa pouco a pouco a pensar que se enganou, que agora não quer mais, que gosta de outra pessoa. E os que sempre ocuparam o lugar de amados, se por algum motivo perdem os seus adoradores, quando por exemplo estes morrem, descobrem que na verdade amavam o outro que desprezavam, mas agora é tarde para voltar atrás. Enfim, o amor sustentado na idealização é um eterno desencontro.

É possível que os relacionamentos baseados no ideal de completude só se sustentem em uma sociedade organizada por obrigações e compromissos sociais, como o casamento e o dever de formar uma família.

Em um mundo como o nosso, em que cada vez mais não há padrões gerais que definam as relações entre as pessoas e em que, a princípio, se poderia escolher qualquer um para amar e estar, a expectativa de ser amado talvez não permita a união entre as pessoas. É curioso observar que em uma sociedade em que os casais podem se unir por amor e nenhuma outra obrigação, o encontro entre duas pessoas pareça cada vez mais ser superficial e fugaz.

Quando estamos livres, quando não temos mais proibições ou deveres para poder amar, nos deparamos com a frustração de que o outro não pode nos completar. Diante desta constatação, podemos ficar desanimados, queixosos ou nos resignarmos de que o amor não existe, que é uma ilusão boba, que só queremos sexo ou uma companhia para ir ao cinema, nada muito duradouro.

Talvez devêssemos mudar de expectativa amorosa para possibilitarmos novos encontros. Temos práticas novas mas ainda estamos permeados por crenças antigas.

Se conseguíssemos abandonar a fé na completude e se, em vez de uma obrigação ou uma prisão, pudéssemos perceber uma relação a dois como uma escolha, é provável que encontrássemos a oportunidade de um novo amor.

Quando idealizamos alguém e queremos que este nos complete, chamamos de amor a expectativa de ser amado. Neste caso, amar e esperar ser amado se confundem. De forma diferente, quando alguém por acaso nos despertar paixão, podemos considerar que esta pessoa na verdade está nos convidando a nos percebermos como desejantes e não como carentes. Desejar é amar na posição de quem se sabe imperfeito sem possibilidade de cura, de alguém que ama mas não pode ser amado ou completado e que por isto tem de estar sempre amando, animado, inventando e criando repostas na vida.

Podemos, assim, tentar apostar que quando alguém nos fala “eu te amo” está dizendo “você provoca amor em mim”, “você desperta o meu amor” “você me faz amante” e não “você é amado por mim” ou “eu te completo e você me completa”. O amor do outro não faz ninguém completo, mas desejante.

Ser amado é um ideal ou um fim e, por isto, nunca deve ser alcançado. Deve ficar só na promessa. Apenas amar, sem a cobrança de ser amado, permite uma oportunidade real de encontro. Amar sem idealizar é perceber encanto no enigma que é o outro para mim. É ver beleza na incompletude, no que a outra pessoa nos traz de real, quando estamos próximos, no presente e não apenas enquanto ideal, no como deveria ser, quando estamos distantes, na impossibilidade, no não tem jeito, no desencontro. No amor idealizado quando um ama o outro não pode amar, um é amado e o outro quer ser amado. No amor desejante os dois provocam amor um no outro, os dois são amantes ao mesmo tempo.

Para que haja o encontro entre dois amantes é necessário que pelo menos um dos dois consiga sair da dúvida, da insegurança de ser amado e acreditar e insistir em amar apenas. Que um não exija provas de amor do outro e nem se sinta na obrigação de oferecê-las. Que ensine, com o seu exemplo, que é possível amar sem a expectativa de ser amado. Deste modo, não deve cobrar que o outro faça o mesmo que ele e que queira ser amante também, não dever fazer ameaças e nem colocar temores, mas permitir a escolha. Se por acaso a outra pessoa topar poderá haver o encontro.

Quem vive de idealizar o amor exige do outro uma coisa que ele não pode dar. Como é impossível completar alguém (talvez só na morte se encontre o sossego, a segurança e a paz da completude) o final de toda idealização são acusações contra o amado que lhe prometeu uma coisa e entregou outra. Dormimos com o príncipe ou a princesa e acordamos com o vilão ou a bruxa.

Os aspirantes a amados estão sempre inseguros, sempre na expectativa de perder o lugar imaginário que buscam, sempre ansiosos, na paranóia, no medo de ser menos queridos e por fim rejeitados.

Diante da angústia de se perceber incompleto, do nosso mal-estar incurável, podemos apelar para a ilusão do outro, para a crença de que se pode encontrar alguém que nos complete, que nos ame totalmente. Outra alternativa seria lançar mão da criatividade, ter o amor não como um fim, mas como ferramenta para viver. Quem escolhe desconhecer a incompletude vive na esperança de um outro que nunca vem, se entretendo em expectativas frustradas e paralisado em sua capacidade criativa. Quem sabe do impossível e inclui a impossibilidade de perfeição em sua vida, se vê como criador, como agente. Um fica no lugar de mal-amado, o outro no de amante.

Afinal, o impossível de ser compreendido é que permite comunicar, o impossível de ser escutado é que permite falar e o impossível de ser amado é que permite amar.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

SE, JIE ZII E ZIE

Desejo e Perigo (Se, Jie no título original em Chinês), filme do diretor Ang Lee atualmente em cartaz nos cinemas, parece tratar de temas já vistos nas telas em outras produções: mocinha envolvida na luta pela libertação de seu país torna-se espiã, se faz passar por amante do vilão e, no fim, contra a sua vontade, acaba se apaixonando por ele.

Mas a percepção de falta de novidade só funciona nos resumos de divulgação do filme que tentam atrair o maior público possível descrevendo o trabalho de Ang Lee como um thriller bem feito destinado ao entretenimento de uma audiência que busca somente um pouco de adrenalina.

Quem assistir ao filme com um mínimo de atenção pode sair do cinema com algo bem mais valioso do que uma pretensa descarga hormonal. Pode-se descobrir que Desejo e Perigo é uma obra delicada e, ao mesmo tempo, provocante e surpreendentemente inovadora.

A novidade do filme está no questionamento que ele provoca de valores sociais a que estamos acostumados. Não necessariamente dos valores caretas que de uma forma geral já sabemos ultrapassados, como virgindade antes do casamento ou sexo apenas com fins reprodutivos. O que Desejo e Perigo interroga é muito mais atual e perturbador: será que o mais importante em nossas vidas é lutar por alguma ideia que temos de um mundo melhor, mais harmônico e justo?

Algumas décadas atrás as pessoas saíam às ruas ou mesmo pegavam em armas para defender um planeta com menos desigualdade: combatiam os dominadores e exploradores dos mais pobres e excluídos. Buscavam eliminar as injustiças perpetuadas pelos donos do poder que viviam de privilégios e prazeres no meio de uma massa excluída e sofredora.

Mas após o fracasso dos sistemas comunistas, da pobreza e da feiúra socializadas de Cuba e companhia, mesmo que ainda permaneçam alguns Chávez perdidos no passado, foi-se embora a última chance de encanto pelas utopias. Como resultado desta desilusão, passou-se a defender que a organização social capitalista era o fim do desenvolvimento humano, que não haveria mais mudança social significativa, que teríamos chegado ao fim da história. De sonhadores de um mundo diferente, deveríamos nos resignar com uma realidade prática, definida e, porque não, cínica.

Desejo e Perigo pode oferecer uma alternativa às utopias socialistas ou ao cinismo capitalista, às imagens idealizadas de um ser humano sonhador ou resignado. No filme, jovens atores se unem para a ajudar a China a se livrar da cruel dominação japonesa. Idealistas e corajosos, se arriscam em nome do seu ideal de libertação. Entretanto, não conseguem ver realizado o seu sonho. São traídos pela companheira que, atordoada pelo seu amor ao inimigo, permite que ele escape e condene ela e os seus colegas de teatro à morte.

Mas a atitude da jovem atriz de forma alguma parece um ato de fraqueza, de covardia. Ao contrário, sua escolha mostra-se corajosa e honrada. Seu compromisso maior não é com o ideal de seus camaradas. Mais importante e sincera é a sua lealdade ao amor que sente, mesmo que isto lhe custe a própria vida.

O que parece uma escolha ética egoísta pode na verdade se revelar uma nova orientação para os tempos em que vivemos, uma possibilidade de mudança para um mundo sem utopias, sem ideais de equilíbrio, harmonia e perfeição. Uma forma de sairmos do cinismo capitalista, das relações precisas e matemáticas, para encontramos o encanto, o mistério e o entusiasmo pela experiência humana.

O amor que aparece no filme não é o amor romântico idealizado de completude. Mas um amor que tira as máscaras sociais, as divisões ilusórias que nos fazem acreditar na separação entre vilões e mocinhos, entre bons e ruins. Para isto, este amor deve fazer os amantes se sentirem incompletos, imperfeitos, cheios de furos e buracos.

Deve-se fazer o outro se perceber não pleno e desejante. E é isto que o relacionamento entre a atriz e o aparente insensível burocrata do filme mostra. É como se os dois aos poucos fossem se furando e, assim, provocando o desejo um no outro. No fim não se trata mais de uma jovem frágil e idealista e de um velho autoritário e corrupto, mas de dois seres humanos que se amam pelo desamparo de suas existências. O filme exibe este processo de transformação por meio de belas e intensas cenas de sexo.

Mais do que eliminarmos os exploradores do mundo, o desafio atual é ir além da divisão entre bons e ruins, entre vilões e inocentes, entre agressores e vítimas. Sem a quem culpar pela nossa infelicidade temos de nos deparar com a nossa impossibilidade de encontrar um universo justo e equilibrado.

Deste modo, poderemos encontrar uma nova orientação ética que não seja por um ideal final, por uma promessa de perfeição que nunca vem. Em vez de expectativas ilusórias, nos nortearmos por aquilo que o universo nos traz de real. Um mundo não do que deveria ser, mas um mundo do que é, do que se apresenta para nós. Uma realidade que está sempre exigindo respostas renovadas, uma obra em movimento mas sem um fim. Em vez de frustração, queixa, desânimo e arrependimento, podemos gastar nossos esforços em criar soluções. Só contar com aquilo que temos e não com aquilo que deveríamos ter. Em vez de uma felicidade que depende de encontrar o que nos falta, uma possibilidade de ser feliz usando o que se tem para inventar repostas, mesmo que precárias.

Se em uma ética do ideal nossa orientação vem da esperança do encontro com a perfeição, de um por vir, de uma união com Deus na eternidade, a ética real se guia pelo que é presente, por aquilo que nos aparece, pela surpresa que o universo nos oferece, por aquilo que nos anima em nossa incompletude. Se não há Deus, a ética real pode se valer apenas de um simples olhar de quem está ao nosso lado, de alguém que nos provoca e em quem provocamos amor.

Zii e Zie, trabalho mais recente de Caetano Veloso, apresenta uma musicalidade estranha, dura e pouco melódica que acompanha possivelmente algumas das letras mais frescas e iluminadas da música popular contemporânea. Reproduzo abaixo a letra da última canção do álbum:

Diferentemente

Acho que ouvi numa canção de Madonna
“When you look at me I don’t know who I am”
E desentendi
Pois comigo é você quem, me olhando, detona
A explosão de eu saber quem eu sou
Eu nunca imaginei que nesse mundo
Alguma vez alguém soubesse quem é
Mas se você me vê seus olhos são mais do que meus
Pois amo
E você ama
E aí o indizível se divisa
E a luz de tantos céus inunda a mente
E no entanto
Diferentemente de Osama e Condoleezza
Eu não acredito em deus

Em um mundo em que não podemos mais nos guiar por uma imagem divina, por um mestre, por um ideal ou uma utopia, talvez não reste outra certeza que não seja o olhar de alguém que sabe da sua imperfeição incurável, mas que mesmo assim (ou por isto) insiste em buscar um outro para amar. No momento em que somos alvo deste olhar, encontramos a nossa única possibilidade de existência: uma invenção permanente que tenta responder a um desejo de amor para sempre impossível.