sábado, 30 de maio de 2009

FLOR DE MARACUJÁ

Um amigo que possui em seu apartamento um amplo jardim repleto de árvores frutíferas (ele mora no primeiro andar, junto ao solo, e por isto tem um grande espaço livre além da área construída do imóvel) me descreveu entusiasmado as belas flores do seu pé de maracujá que em determinadas épocas do ano enfeitam o ambiente.

O que achei curioso foi o fato de que a beleza da descrição se devia não só às características específicas das flores, como sua coloração ou formato das pétalas, mas principalmente a algo surpreendente que aparecia no relato de todo o ciclo de vida delas, desde a floração até os seus frutos: de uma planta rasteira e monocromática nascem flores de cores variadas que necessitam ser apreciadas de baixo já que estão sempre voltadas para o chão. Do meio destas delicadas formações, surgem pequenas esferas esverdeadas que vão crescendo até atingirem o tamanho volumoso e a cor amarela próprias do fruto que usamos para fazer sucos e caipirinhas.

Uma história simples, talvez corriqueira para aqueles que se dedicam à jardinagem, mas que me pareceu bonita e estranha ao mesmo tempo. É como se o enredo dos pés de maracujá não seguisse uma ordem ou uma lógica a que estou acostumado. Acredito que o encanto que senti ao ouvir meu amigo veio desta pequena surpresa. Saí de sua casa com um pensamento:como observar a natureza pode ser fascinante.

Confesso que depois fiquei um pouco contrariado por esta conclusão, afinal nunca consegui me seduzir pelos discursos a favor de uma vida harmônica com a natureza. Há muito tempo tenho uma certa aversão a ideais naturebas. De uma forma geral, ao ouvi-los, saio com o sentimento de estar escutando a defesa de uma pureza que em nada se diferencia da pregada pelas religiões tradicionais. Para os naturalistas, a civilização é encarada como um pecado. O homem verdadeiro e limpo seria aquele que vive em sintonia com o espaço natural. Como toda religião, este naturalismo vive de vender ideais ilusórios, promessas nunca alcançadas de equilíbrio, perfeição e felicidade.

Acredito que o ser humano está impregnado de modo irremediável pela civilização, pelas suas criações e transformações em seu ambiente natural. A civilização não é um defeito, um embuste que nos impede de termos contato com o mundo verdadeiro, ela é o próprio mundo humano, a nossa única realidade. Não temos a menor idéia de como é o mundo real, a natureza em si, embora ele esteja sempre presente nos rodeando. Diante desta presença constante, estamos permanentemente inventando arranjos que tentam dar conta deste universo que nos escapa.

A linguagem é a nossa grande invenção em reação a um meio misterioso. Mas cremos tanto que ela é uma representação fiel do mundo real que a tomamos como este próprio mundo em si. Não queremos saber da distância instransponível entre o universo que criamos e o universo real. E a todo momento este engano nos cobra, quando somos surpreendidos por algo que não esperamos, um desastre, um acidente, alguma coisa que não funcionou como deveria. Mas reagimos reforçando o engodo, dizendo que a nossa capacidade de representação está em contínuo processo de aprimoramento e que, em um futuro talvez nem tão distante, encontraremos uma completa justaposição com o que é real. Neste momento teremos a certeza e a segurança total da atividade humana, não seremos mais alvo de eventos inesperados, estaremos livres de acidentes, doenças, surpresas e, quem sabe, eliminaremos a morte.

Para as religiões, o mundo verdadeiro é aquele que está fora de nós, no céu ou em um nirvana qualquer. O mundo em que vivemos é apenas uma ilusão passageira. De uma forma diversa, a razão e as ciências trouxeram a esperança de encontrar o mundo real por aqui mesmo. Defenderam a crença de que a observação e a descrição rigorosa das coisas nos permitiriam atingir uma representação completa e perfeita do universo.

Mas a nossa capacidade representativa é constituída por vícios incorrigíveis. Quando nomeamos algo que percebemos, estamos fazendo uma generalização sem qualquer ressonância no mundo real. Ao dizermos, por exemplo, pedra, fazemos um recorte que tem, como princípio, a crença de que o universo é composto de coisas semelhantes que se repetem. Para que sejam comparáveis, também devemos acreditar que estas existências têm limites precisos. Ao realizar este recorte e este limite, dando um nome a uma percepção, o ser humano está fazendo existir algo que necessariamente não existe no mundo real, está criando, de fato, uma ficção. É provável que, no universo real, as coisas não possam ser generalizadas nem isoladas umas das outras, de modo que é impossível nomeá-las. Enfim, as coisas só existem enquanto invenção, obras humanas ficcionais.

Nos iludimos acreditando que o universo segue uma lógica matemática. Nele, as coisas não são unidades inteiras que podem ser somadas com um resultado preciso. No mundo real é impossível somar 1+1 porque não há nenhum número1, não existe uma unidade delimitada no tempo e no espaço. A matemática só funciona perfeitamente em nosso mundo inventado.

Diante da nossa percepção de que as unidades que nomeamos aparecem e desaparecem do mundo, inventamos um ser chamado tempo. Assim, podemos dar prova da existência das nossas criações, dizer que elas duraram um tanto definível, que nasceram e morreram em tal data, que uma coisa vem de outra, que tudo tem causa e conseqüência, que a passagem das coisas pelo mundo deixa rastros e frutos.

Construímos um mundo humano à imagem e semelhança da nossa invenção, existências que se repetem, coisas que se pretendem unidades, tudo bem delimitado. Os objetos humanos tentam acompanhar a nossa fantasia. Uma cadeira humana parece muito mais precisa que uma pedra ou uma flor percebidas na natureza. Vivemos dentro desta bolha virtual querendo nos convencer o tempo todo de que ela é real.

É assim que tento entender a necessidade de olharmos para a natureza, para a flor de maracujá, não para dominá-la, defini-la ou representá-la perfeitamente, mas para encontrarmos o enigma intransponível que o universo nos oferece. Enigma que nos mantém vivos e animados ao demandar invenção permanente.

Não precisamos temer o assombro que é o universo, devemos encará-lo sob o risco de perdermos a beleza, o encanto, a surpresa e, com tudo isto, a própria humanidade.

Se algum dia encontrássemos a fantasia impossível da completude, se nosso mundo de invenção fosse equivalente ao mundo real, não haveria lugar para o ser humano, perderíamos a nossa diferença, voltaríamos à massa amorfa e sem existência do universo. Desistiríamos de nossa condição de criadores, de ficcionistas que fazem existir marias, prédios, árvores, mitocôndrias e galáxias.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

AMOR VERDADEIRO

Qual a necessidade real de se ter um amor? Talvez esta seja uma das perguntas que mais tenho escutado nos últimos tempos.

A resposta mais imediata poderia ser algo como: ter alguém para nos fazer companhia, alguém para dividir projetos, alegrias e angústias, alguém para dar e receber carinhos, cuidados e proteção.

Por esta visão, os amantes seriam bons companheiros e o sucesso da união dependeria das características e gostos em comum e não das eventuais diferenças entre os parceiros.

Este tipo de relação se distinguiria do que se chama paixão. A paixão pode até ocorrer no início do relacionamento, mas ela deve ser atenuada e, se possível, abolida. Amar exigiria uma convivência calma e tranqüila entre os amantes que deveriam navegar em mares serenos e seguros para o bom desenrolar de uma vida a dois.

A paixão seria um sentimento perigoso e enganador, uma patologia que afeta corações inocentes e traz conseqüências desastrosas: o destino de todo apaixonado é a frustração, o arrependimento e a infelicidade.

Nos relacionamentos deveríamos ser práticos, reconhecer que mais importante são os nossos deveres, nosso juramento de lealdade para com aqueles que escolhemos como nossos cônjuges.

A relação entre os parceiros, pela perspectiva descrita acima, em nada se diferencia do relacionamento entre pais e filhos. É como se apenas houvesse uma troca quando a pessoa se torna adulta. Em vez de pai e mãe, marido ou esposa.

Bom, o único elemento que faz a distinção entre a afetividade de pais e filhos e marido e mulher é que, na segunda, deveria haver relações sexuais entre os parceiros. Mas é neste diferencial que aparece uma complicação para os que defendem o amor companheiro: a atração sexual, o tesão, demanda uma certa dose de paixão entre os amantes. Se este fogo não está presente, os casais até podem transar, mas de forma rotineira, sem muito entusiasmo, como uma obrigação. E, mesmo para que isto aconteça da melhor forma possível, precisam dirigir seus pensamentos para outros para os quais secretamente devotam uma paixão infiel. Cada um dos companheiros esconde um amor distante, impedido ou proibido que considera mais autêntico, mais sincero:alguém pelo qual se supõe, mesmo que como uma lembrança do passado, estar apaixonado.

É como se o amor verdadeiro fosse não o cônjuge amigo e devotado, mas aquele que nos provoca paixão. Desta maneira, a reposta mais adequada para a pergunta inicial, sobre a necessidade de um amor, deve ser: ter alguém não para nos fazer companhia, mas ter alguém para se apaixonar.

E qual a necessidade de se estar apaixonado? Para se tentar responder a esta questão talvez devêssemos entender um pouco o que é este sentimento, o que ele desperta, como pode ser reconhecido.

Para isto podemos lançar mão tanto da recordação de cada um no momento em que se percebeu neste estado quanto dos inúmeros exemplos que a literatura ou a música popular nos fornecem. Por exemplo, no final da canção Amor I Love You de Carlinhos Brown e Marisa Monte, em que Arnaldo Antunes lê um belíssimo trecho do livro Primo Basílio de Eça de Queiroz: (...)tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente!Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, com um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!

Em Canção da Manhã Feliz, Haroldo Barbosa e Luiz Reis cantam uma luminosa manhã em que o azul e a luz são demais para o coração. Mas talvez o exemplo mais caro aos brasileiros seja o da garota do corpo dourado que ao desfilar por Ipanema faz o mundo inteirinho se encher de graça, na mais conhecida canção da nossa música popular.

O sentimento que a paixão provoca é justamente este: de repente o mundo se transforma, fica mais radioso, mais colorido, mais feliz. Como se todas as dificuldades, limites e queixas perdessem sua importância, como se fôssemos transportados para uma outra realidade, como se não pudéssemos mais ser os mesmos. E talvez seja este o valor de se encontrar uma pessoa para se apaixonar: a possibilidade de nos modificarmos, de sermos renovados e, como no texto de Eça de Queiroz, termos um acréscimo de vitalidade.

Mas este arrebatamento é muitas vezes descrito e percebido como um exagero desproporcional e irreal, um fogo de palha destinado a uma combustão rápida. Isto nos permite uma terceira questão: seria possível manter, sustentar, fazer durar uma paixão em um relacionamento?

A paixão, ao nos modificar, expõe que somos incompletos, que nossa visão de mundo e nossas fórmulas e receitas de como viver de forma tranqüila e segura são furadas. Estar apaixonado é estar em um mundo de incertezas e, por isto, muitos se assustam diante do amor. Recorrem, então, a estratégias para se ver livres deste incômodo.

É possível que o grande veneno usado para se aniquilar uma paixão seja a sua idealização.

No começo a pessoa amada é vista como perfeita para nós , alguém que tem todas as características que buscamos para nos completar, para nos satisfazer. Fantasiamos uma vida a dois cheia de compreensão e devoção mútua. O outro é o nosso príncipe ou princesa, nossa cara metade ou alma gêmea, predestinado a nos trazer a felicidade.

Depois, com o tempo e com a convivência, após o sim no altar ou uma jura de amor qualquer, quando não mais existir impedimentos que afastem os amantes, o outro pouco a pouco passa a ser alvo de queixas e acusações. Brotam os defeitos e com eles o antes perfeito amado começa a ser percebido como um enganador e a sua face verdadeira seria então revelada: na realidade o príncipe é um vilão, ou melhor, um sapo.

Diante da expectativa impossível de perfeição, não há outro caminho que não seja a passagem de anjo a demônio, de maravilha a porcaria. O engano é achar que a imagem negativa é mais real. Tanto ela quanto a positiva são rótulos imaginários que criamos para sustentar a crença nunca alcançada de encontramos um amor que nos complete. Mas, por esta estratégia, o príncipe fica só na promessa e o sapo é a realidade concreta que temos ao nosso lado. O amor, assim, é uma ilusão que não se pode realizar.

O amor companheiro é normalmente um amor idealizado e por isto cobra, é carente, possessivo e competitivo. Quer aprisionar o amado em uma imagem idealizada, normalmente na de errado, insuficiente, vilão, agressor, enganador, mentiroso. Espera que o outro se reconheça como um pecador irresponsável que precisa sempre de uma mãe ou de um pai para poder bem viver, para lhe corrigir, proteger e ensinar o bom caminho. É uma relação que busca a dependência.

Para se manter a paixão é necessário se manter o encanto. A paixão não nasce, ela não é fruto da idealização de alguém, mas a sua morte começa aí. O que desperta a paixão é o encontro com uma pessoa que nos traga um enigma, alguém possuidor de uma sedução que nos escapa, de um mistério. Ao idealizarmos, mesmo que positivamente, estamos tentando apreender este mistério, dominá-lo e encaixá-lo dentro de uma imagem precisa. Mas, ao fazermos isto, estamos anulando a paixão. É como se os amantes estivessem o tempo todo fazendo um enorme esforço para se livrar do encanto, para mantê-lo distante ou proibido.

A idealização em si não é o problema, mas sim a expectativa de que ela possa ser uma verdade concreta, que possamos encontrar na realidade a imagem idealizada. Deveríamos saber que o que idealizamos é uma ficção, que o mundo e a pessoa real nos escapam e que seus mistérios demandam uma contínua invenção. E é este desconhecido que nos provoca entusiasmo por alguém, que nos desperta a paixão, que nos transforma, que nos coloca em movimento, que nos convida ao amor. E um bom começo para se perceber o outro como uma imagem sem possibilidade de finalização é perceber a si próprio como definitivamente incompleto. Desta forma, podemos estar perto, podemos conviver com nossos amados, ouvir juras e ainda assim manter o desejo e realizar o amor.

O experiência humana nos mostrou que Dom Quixote está certo: o mundo da ficção é a nossa verdade. Os que pretendem nos convencer de que as nossas criações são a realidade do mundo revelada é que estão enganados. Mas, assim como o Cavaleiro da Triste Figura, precisamos inventar um amor, uma Dulcinéia del Toboso qualquer para justificar e dar razão às nossas batalhas, às nossas aventuras, à nossa vida.