segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A PESSOA CERTA

Quando estamos diante de uma possibilidade de relacionamento sempre nos perguntamos se a pessoa em questão é a melhor para nós. Inicialmente pensamos nas afinidades, nas características em comum que nos garantiriam que a relação funcionaria bem. Consideramos também o que o outro tem para nos oferecer, no que se pode ganhar e aprender. Por fim, lembramos de nós mesmos, dos nossos gostos, da nossa maneira de ser, do que podemos dar para quem está conosco. Usamos uma lógica que se pauta no levantamentos dos pontos de similaridade e de diferença, percebendo como diferenças positivas aquilo que um poderia trocar com o outro enquanto juntos. Nesse projeto, os dois, com o tempo, encontrariam cada vez mais sintonia, estariam cada vez mais próximos.

Ela é arquiteta em início de carreira, eu sou um advogado experiente. Ele é de peixes, eu sou de capricórnio. Ele fala quatro línguas, eu mal português. Ela tem duas filhas pequenas, eu gosto de sair na balada. Ele gosta de acordar tarde, eu também. Ela é sonhadora, eu sou mais pé no chão. Ele é baiano e eu gosto de gente alegre. Nessa matemática, cruzamos as várias informações para no final darmos o veredicto sobre quem seria a pessoa correta a escolher. A idéia é encontrar aquele que melhor se encaixaria em mim, aquela que mais me faria feliz. Um ideal de complemento.

O problema é que muitas vezes, na prática, o coração não segue o nosso bom cálculo e insistimos em gostar da pessoa errada: ela não tem nada a ver comigo, mas é ela que eu amo. A escolha afetiva, ao contrário da racional, aparenta guiar-se por uma atração pela encrenca, por aquilo que se mostra difícil de conquistar.

Mais que qualquer característica ou traço pessoal, o que nos atrai parece ser a dificuldade. Mesmo as condições que gostamos de apontar como responsáveis por sermos queridos não passam de sinalizadores de alguém cuja conquista se mostra árdua: quanto mais bonita, mas rico, mas charmoso ou mais sábia, maior é a concorrência, maior a chance de não termos tal pessoa. Ser atraente é estar marcado por uma possibilidade de perda.

Se parecemos muitas vezes buscar certas características nas pessoas que gostamos, é porque elas sinalizam para nós justamente algo que nos escapa, algo que supomos ter perdido.

Se, por acaso, encontramos alguém que tem uma certa condição que nos atrai e essa pessoa, com o tempo, se mostrar apaixonada, totalmente entregue a nós, a marca que nos seduzia perde o seu valor, o seu encanto. Por exemplo, uma mulher pode se interessar por um cara e lhe dizer: nossa, você é goiano, loiro e de gêmeos! Você é a pessoa certa para mim. O rapaz pode ficar feliz com isto. Se ele for estudante de psicanálise pode ficar ainda mais contente ao descobrir que as características citadas pela moça são as mesmas do pai dela. Aí ele se convence de que ela realmente gosta de homens geminianos, loiros e goianos, e, como ele porta tais sinais, é a melhor pessoa para ela. Aí ele dança. Corre o risco de ser inexplicavelmente trocado por um pernambucano moreno e de escorpião.

Ao dizer eu sou o seu homem, a semelhança com o pai da moça desaparece. O pai indica uma perda, um amor proibido, uma promessa nunca alcançada de felicidade. Ao responder sim ao apelo amoroso, loiro, goiano ou geminiano deixaram de ser sinais do pai.

Em relação às expectativas amorosas, estamos sempre queixando: ou nos falta amor e somos desprezados ou temos amor demais e somos sufocados. Se nos amamos mutuamente, obstáculos ou rivais nos impedem de concretizar a relação. O resultado pode ser um constante desencontro: gosto de quem não gosta de mim ou de alguém que não posso ter. Mas seguimos alimentando esperanças: no fundo ela gosta de mim, mas não tem coragem de reconhecer. Deus ou o destino vai dar um jeito de trazer o meu amor para perto de mim. O problema é que quando, por acaso, recebemos um sim da pessoa desejada, logo nos decepcionamos, perdemos o interesse, a paixão se cala: não era bem ela que eu queria. Agora que conheço ele melhor, vejo que não tem nada a ver comigo.

Inventamos as mais furadas desculpas para justificar o nosso desinteresse afetivo. Qualquer defeito se transforma numa prova definitiva do mau caráter e da incompatibilidade do outro. Como conseqüência dessa insatisfação permanente, nos meios sociais mais tradicionais, naqueles em que ainda valem os compromissos de se casar e se constituir família, encontramos cônjuges que não se sentem atraídos um pelo outro e constantes pulos de cerca, tanto dos maridos quanto das esposas. Nos círculos em que os compromissos sociais são menos imperativos, encontramos uma troca freqüentes de parceiros. A atração e o encanto podem durar apenas o tempo de um baile, uma balada ou uma noitada.

Estar satisfeito com o amor que se encontra parece ser muito raro. Enquanto esperamos um amor de complemento, ficamos sempre insatisfeitos. É impossível alguém que nos satisfaça totalmente, alguém que nos complete. A única forma de acreditarmos nisto é nunca alcançando o ideal pretendido. Damos sempre um jeito da coisa dar errado. Parece que o importante não é encontrar o amor, mas manter a máquina que nos faz acreditar que um dia poderemos encontrar um amor final, um sentido último para as nossas vidas. Qualquer coisa que ameace o funcionamento desse aparelho de sentido ilusório deve ser eliminada de nosso horizonte. Defendemos com unhas e dentes a nossa ilusão, o nosso engano, as nossas mentiras: é melhor não saber disso.

Mas teríamos outra alternativa? Como manter o amor por alguém se o que sustenta a paixão é a dificuldade, a distância, a eterna marca de algo que não se tem?

Para dar essa difícil resposta talvez devêssemos pensar que nossa dor é mais profunda. Não se trata de recuperar algo que se perdeu ou de ganhar algo que nos falta, mas perceber o amor como um encontro com aquilo que nunca tivemos nem nunca teremos, aquilo que nos é impossível, aquilo que faz da vida e do outro um mistério absurdo e inalcançável. Só essa sombra permite o encanto, a paixão.

Uma tarefa árdua. Estamos acostumados a ver e a medir as pessoas à nossa volta pela sua imagem, pela sua aparência, por aquilo que elas nos teriam para nos completar, por aquilo que seria claro e racional. Ela é rica, ele é alto, ela é medrosa, ele é sem-vergonha, ela é interesseira: como anulamos imediatamente o amor ao tentarmos, o tempo todo, enquadrar a pessoa desejada dentro de uma determinada categoria. Quanto as psicologias nos ajudam nesse vício com as suas classificações e receitas.

Parece que morremos de medo de amar. Amar exige que nos mantenhamos na incerteza, na surpresa, no acidente, na incompletude. Precisamos olhar para o outro e não vê-lo, enxergá-lo como um fantasma. Alguém que nunca possuiremos, alguém que nos escapa permanentemente, uma pessoa que desde o princípio estamos condenados a perder, um mortal.

O amor talvez exija alguém que possua a coragem de seguir amando sem o medo de não ser amado, alguém que não tema caminhar no desconhecido. Como no verso de Drummond, alguém que saiba amar depois de perder. Alguém que suporte a angústia de não se deixar enquadrar em nenhum lugar imaginário e que, assim, permita a quem está ao seu lado a possibilidade viver a experiência rara de amar.