segunda-feira, 10 de maio de 2010

FREUD E PLACEBO

Nos últimos meses, tenho acompanhado pela imprensa a discussão sobre a eficácia ou não dos antidepressivos. A polêmica surgiu após a divulgação de novas revisões dos estudos com estes medicamentos que teriam concluído que o benefício proporcionado por eles pouco ou nada difere do encontrado com o uso de placebo (pílula com o mesmo aspecto, mas que não contém as substâncias químicas responsáveis pelo efeito da medicação). Essa semelhança nos resultados seria mais evidente no tratamento dos quadros para os quais os antidepressivos são hoje mais prescritos: as chamadas depressões leves e moderadas. Nas depressões mais graves, a vantagem sobre o placebo seria mais consistente.

Muitos psiquiatras ouvidos pelos meios de comunicação saíram em defesa dos antidepressivos questionando a validade dos critérios estatísticos utilizados nessas novas revisões. Argumentam que, no dia-a-dia, os benefícios do tratamento da depressão com substancias químicas são claros.

Chama a atenção nessa querela o fato de que psiquiatras que, no passado, recorriam à necessidade de evidências estatisticamente comprovadas para defender o uso de antidepressivos, hoje, apelem para critérios por eles mesmos considerados como menos objetivos e científicos, como a impressão clínica.

Entretanto, talvez, o mais curioso nessa história não seja a pouca diferença de efeito entre placebo e antidepressivos, mas a boa reposta terapêutica encontrada com o uso de placebo. Nos estudos, muitos pacientes relataram melhora quando estavam em uso pílulas que não continham medicação. O fato de acreditarem estar sendo tratados foi suficiente para que se sentissem mais animados. Na medicina, esta resposta é chamada de efeito sugestivo.

A capacidade sugestiva está diretamente ligada à crença do paciente e do próprio médico em relação ao tratamento que está sendo proposto. Por esta razão, nas pesquisas, se exige que nem o paciente nem o médico saibam quando se está usando medicação ou placebo.

Quanto maiores a segurança e a convicção do psiquiatra ao prescrever determinada medicação, maior a possibilidade do paciente ter uma boa resposta. Se vacilamos ao indicar um tratamento, é quase certo que encontremos problemas na eficácia ou a queixa de efeitos colaterais indesejados. Do mesmo modo, quanto maior a crença do paciente na sabedoria do profissional que o está tratando, melhores são os resultados. Uma indicação cheia de elogios, o preço alto de uma consulta ou os títulos e cargos do médico em questão, são suficientes para causar efeitos terapêuticos. A fé no médico estimula a fé do paciente e a fé de ambos cria uma realidade.

Outro fator importante para um bom convencimento é o quanto que as convicções que embasam determinado tratamento encontram lugar nas crenças gerais de uma sociedade.

Por exemplo, em algumas tribos primitivas havia a proibição de que o pajé fosse tocado por outro membro do grupo. Existem relatos de viajantes ocidentais contando casos de pessoas de uma tribo que após violarem, por acidente, a norma e tocarem o pajé, desenvolveram um sofrimento físico intenso que as levaram à morte. Hoje, acreditar que alguém possa morrer doente só porque tocou em um pajé nos parece absurdo e improvável.

Embora ainda presentes (vide as famosas cirurgias espíritas), as crenças místicas e religiosas perderam força para as convicções médicas ou científicas. No mundo atual, acreditamos que todos os males do corpo são devidos a alterações físicas possíveis de ser detectadas e corrigidas. Como se fôssemos um grande relógio que em certo momento deixou de funcionar bem porque uma determinada peça saiu do lugar ou se estragou. Basta trocarmos ou consertarmos esta peça para que o relógio volte a funcionar adequadamente. Esse modelo pressupõe que cada doença tem uma causa específica e que existiria uma normalidade, um estado de equilíbrio que foi rompido e que precisa ser recuperado.

Até pouco tempo atrás, essa visão se limitava às chamadas doenças físicas, como as doenças infecciosas, as doenças cardíacas ou os tumores. Nos últimos anos, entretanto, esses conceitos também têm prevalecido no campo dos sofrimentos mentais e mesmo em relação a todo o comportamento humano (as áreas que antes eram consideradas derivadas não do corpo, mas da alma). O modelo do relógio tornou-se hegemônico para definir o ser humano. O sofrimento psíquico pôde, então, ser dividido em diversos tipos distintos e cada um deles estaria relacionado ou seria causado por uma alteração específica em determinada área do cérebro. Na psiquiatria, esse movimento é chamado de psiquiatria biológica ou neuropsiquiatria.

É interessante observar como essa visão do comportamento e do sofrimento humano ganhou aceitação na sociedade. Conceitos como depressão e transtorno bipolar foram incorporados pela população como verdades concretas e inquestionáveis. Os pacientes acreditam piamente que seu mal-estar psíquico se deve a um defeito nos seus níveis de serotonina ou de outra substância recentemente mais comentada, a dopamina. Muitos têm a convicção de que estar deprimido é igual ter carência de vitamina C. Basta repor a serotonina para tudo voltar ao normal.

Nos consultórios, são distribuídas aos pacientes pequenas cartilhas explicando a sua doença mental. Elas são ilustradas com desenhos que representam as regiões do cérebro que estariam alteradas (normalmente a área chamada fenda sináptica, região em que os neurônios se comunicam) e como os medicamentos corrigem estas perturbações. Estes desenhos, talvez, tenham para os seus crentes o mesmo peso de realidade que no passado tiveram a ilustrações que mostravam anjos, santos e Deus no paraíso.

A facilidade de assimilação do modelo biológico na sociedade em que vivemos pode estar relacionada a algumas vantagens evidentes deste conceito para os profissionais de saúde e para os seus pacientes. Ele teria permitido aos psiquiatras finalmente encontrar um modelo objetivo para a sua atividade. Só está faltando serem concretizadas as promessas de marcadores específicos para cada transtorno mental que possam ser avaliados por exames de imagem ou por dosagens sanguíneas, como em outras áreas da medicina. Pelo o que se tem visto nos congressos, é possível que demore um pouco...

Para os pacientes, a ideia de um determinismo biológico aparenta ser uma crença confortável e prática. O sofrimento psíquico não é da responsabilidade de quem o está sentindo. Os pacientes são vítimas de sua biologia, de sua genética. É muito desconfortável se sentir deprimido e ainda por cima se sentir culpado por isto.

Basta procurar um psiquiatra que, como um bom relojoeiro, irá detectar qual parte do cérebro deixou de bem funcionar e dirá ou prescreverá a melhor forma de resolver este defeito. Como, até o momento atual, as pesquisas científicas não conseguiram relacionar cada transtorno mental com uma alteração orgânica específica (não se sabe a causa das doenças mentais), os remédios prescritos permitem somente um controle dos sintomas, sendo muitas vezes necessário o uso contínuo da medicação. Os pacientes, então, se dizem portadores de determinado transtorno, têm a expectativa de que as outras pessoas os reconheçam neste lugar e que nada deles se espere muito até que, quem sabe, um dia, o seu mal possa finalmente ser curado. O seu desajuste no mundo tem uma explicação, não é da sua responsabilidade (na verdade ele é vitima) e, como não existe cura, o paciente tem pelo menos um boa justificativa para se desculpar do seu insucesso na vida.

Já que a responsabilidade pelo sofrimento psíquico não é dos doentes, de quem seria então a culpa? Talvez dos pais que lhes transmitiram a genética defeituosa, dos governantes que não zelaram por um saudável e seguro ambiente, dos médicos e pesquisadores que ainda não encontraram uma forma concreta de cura e até mesmo de Deus que permitiu que tudo isto acontecesse. Além de irresponsável, o portador de transtornos psiquiátricos pode se sentir alguém menos aventurado pelo destino, alguém que o mundo ou a natureza não amou como devia. O paciente sofre, mas tem o conforto de poder ter um culpado pela sua condição e dizer: se não fosse a doença eu seria feliz.

Com todo o respaldo nas crenças sociais do mundo atual, não é de se estranhar que os antidepressivos encontrassem tamanho espaço na tentativa de se aliviar as dores mentais.

Mas caso as recentes revisões estejam corretas e o efeito dos antidepressivos seja equivalente ao de um placebo, talvez pudéssemos tentar entender melhor fenômenos que são comuns na prática psiquiátrica que se apóia na farmacologia.

Intriga o fato de que pacientes com o mesmo tipo de sintomas e mesmo perfil físico possam apresentar resultados completamente diversos quando submetidos ao mesmo tratamento farmacológico. Além disto, é freqüente observar, após alguns meses, pessoas que inicialmente apresentaram uma boa resposta com o uso de determinada medicação piorarem, terem recaídas ou desenvolverem outros tipos de queixas: por exemplo, um paciente que melhorou da depressão passa a queixar-se de compulsão por comida. É normal ter que se aumentar a dose dos remédios, trocar de medicação ou fazer a associação de medicamentos diferentes. Cada vez mais o paciente psiquiátrico se caracteriza por ter diversos diagnósticos e usar várias medicações conjuntamente.

Embora robusto no começo, sabemos que o efeito sugestivo não se mantém com o tempo. É como se o poder da crença no saber de um outro tivesse uma duração limitada. O encanto logo se quebra. No início os pacientes ficam muito gratos, como se submetessem de bom grado ao saber que lhes é apresentado. Depois retornam revelando que este saber não foi suficiente, que continuam a sofrer, que precisam de um saber maior, mais completo. O médico, angustiado diante da piora e da demanda do paciente que ameaça a sua posição e o seu saber, passa, então, a tentar diversas maneiras de tirar o mal-estar que insiste em mostrar a cara: aumenta as doses, acrescenta outro remédio, muda o diagnóstico.

Se, por fim, o paciente se mantém na queixa, é classificado como refratário, podendo até ser encaminhado para intervenções mais extremas, como a psicocirurgia. Outros são diagnosticados como tendo um transtorno de personalidade que impede o bom andamento do tratamento, como o transtorno borderline. No fim, sejam aqueles que necessitam do uso contínuo das medicações, sejam aqueles que respondem pouco a elas, todos aguardam a promessa de uma felicidade que viria quando o saber total do funcionamento do corpo humano nos livrasse das doenças e da morte.

O tratamento baseado na sugestão, na expectativa de um saber que nos curaria, de um outro que sabe de nós e que poderia nos proteger e nos livrar de todos os males, é uma intervenção que se apóia na promessa e na esperança futura. O presente não pode ser desfrutado: só serei feliz quando for plenamente são. Para os religiosos, quando forem para o paraíso; para os crentes da biologia, quando conhecermos todo o corpo e, se isto não ocorrer durante suas vidas, quem sabe, seus filhos e netos possam ter o que eles, por azar, não tiveram.

Mas como seria um tratamento que não se apoiasse em um efeito placebo, na suposição de um outro que sabe de mim? Há mais de 100 anos, um médico ofereceu um outro caminho, uma nova possibilidade.

No final do século 19, Sigmund Freud rompeu com o mais radical e exemplar tratamento sugestivo conhecido: a hipnose. Em vez de conduzir por sugestão hipnótica o que uma paciente deveria lhe contar, Freud, incentivado pela própria moça, se arriscou a deixar que ela lhe dissesse livremente o que lhe vinha à cabeça.

Uma pequena mudança que talvez tenha representado uma revolução: o saber não está no outro, não é prévio, mas se faz à medida que o paciente fala, está sempre em construção e, portanto, permanentemente inacabado.

A nova transferência, o novo amor terapêutico criado por Freud não se dá pela suposição de um saber que está no médico ou em qualquer outra pessoa. O que trata o paciente não é o acúmulo de conhecimento, não são os diplomas, títulos ou cargos, não é a aparência séria nem as roupas sóbrias, não é o consultório moderno nem muito menos o preço alto das consultas ou outro marketing qualquer. O tratamento ocorre apenas pela capacidade do clínico de suportar, diante dos seus pacientes, a impossibilidade de tudo saber, a impossibilidade de um amor que nos complete, a impossibilidade de vencer a morte.

O analista não se angustia por não saber tudo, não se sente devedor ou culpado por isto. Ele não promete a salvação, não oferece saberes, regras ou receitas de bem viver, mas mostra, com o seu exemplo, que se pode ser feliz na incompletude. Um exemplo que não pode ser copiado, mas que revela que é possível, para cada um, ao seu jeito, inventar uma felicidade sem um fim.

Mais que pelos seus conceitos e teorias, pela sua aparência que muitos percebem como velha, Freud permanece atual pelo seu exemplo. Ele soube manter até o fim da vida uma falta de contentamento permanente diante da respostas que dava para o mal-estar que insistia em seus pacientes. Não procurou soluções e modelos completos, mas seguiu adiante inventando e inventando. Não anulou seu compromisso com a verdade mesmo tendo de enfrentar ameaças à boa imagem que desfrutava na sociedade médica de seu tempo.

Freud não recuou quando a verdade lhe pediu a afirmação da sexualidade das crianças e de que, além da busca pelo prazer e pela sobrevivência, habita nos humanos uma insistente insatisfação e um instinto de morte.

Com o uso apenas de antidepressivos, encontramos pessoas que se tornam portadores de transtornos mentais à espera de um saber total e impossível que possa curar o seu mal-estar (poderíamos lembrar que relógio é uma invenção humana, sem correspondência na natureza. Não deveríamos confiar que nossos delírios sejam o mundo).

Com o tratamento inventado por Freud, podemos nos deparar com pessoas que se responsabilizam por criar sua felicidade, por fazer valer suas existências na precariedade real do presente e não na espera de um futuro sempre idealizado.

Como no exemplo de Freud, os analisados podem ter a oportunidade viver pela escolha por aquilo que é verdadeiro e não pelo dever com aquilo que nos engana, com as ilusões, com a mentira, com os placebos.