quarta-feira, 6 de abril de 2011

COBRANDO PARA DAR ERRADO

Uma mãe, indignada, me perguntou como é que ela, sendo uma mulher tão direita e tão batalhadora, podia ter criado um filho tão irresponsável e tão molenga, como era o seu. Ela e o marido (que, apesar de uns goles a mais e uma certa truculência, também é uma pessoa respeitável) sempre deram um bom exemplo em casa, ofereceram ao filho a melhor educação que se pode dar. Não mimavam o garoto, sabiam colocar limites e estabelecer castigos, caso fosse necessário. Ela se indagava se as punições não foram brandas demais. Se tivesse sido mais rigorosa, se marido se mostrasse mais presente e severo, quem sabe o filho tivesse entrado nos eixos.

Desde cedo, viu que o filho tinha algo de errado. Mal engatinhava e já destruía o que colocava na mão. Depois, problemas na escola, suspensões e expulsões. Na adolescência, brigas e uso de drogas. Agora, já homem feito, preguiçoso e vagabundo, não para em emprego algum, ainda morando com os pais e com total dependência deles. Ela me disse que não tinha vergonha nem medo de bancar a chata, que fazia questão de não deixar o filho ficar acomodado, que estava sempre cobrando que ele mudasse, que tomasse um jeito na vida, que virasse homem. Mas, às vezes, se sentia cansada, pois, mesmo se esforçando, o meninão que tinha em casa nunca mudava. Ela queixava-se por Deus ter lhe dado tamanho sofrimento na vida.

Em um outro momento, tive a oportunidade de conversar como esse filho que tanta amargura causa em sua mãe zelosa. Ele me contou que, por mais que sentisse um pouco de raiva pelas cobranças, achava que a mãe estava correta nas queixas que fazia dele. Ele, também, se via como uma pessoa errada e fracassada na vida. Mas, por mais que tentasse, as coisas nunca davam certo para ele, como se estivesse condenado a ser alguém menos feliz que os outros. Fez tratamento com um psiquiatra, chegou a usar ritalina para ver se conseguia se concentrar mais nas coisas. Relata que se animou por um tempo, mas logo perdeu o pique e tudo voltou à estaca zero. Concluiu me dizendo que o seu problema devia ser genético, “um defeito de fábrica”.

Tanto na fala da mãe quanto na do filho, encontramos uma mesma crença em relação ao destino do rapaz: ele nunca iria mudar, não tinha jeito, ele era um errado incorrigível. Os esforços de ambos, no fundo, parecem ter apenas o objetivo de comprovar essa expectativa, como se dissessem: está vendo, não foi por falta de tentar, não dá certo mesmo. Entendemos melhor esse comportamento se pensarmos que a mulher e a sua cria atribuem a causa dos problemas a algo que não depende deles. Ela explicando a má índole do filho como castigo de Deus; ele se sentindo prejudicado por uma falha na sua biologia. Na realidade, os dois se percebem como vítimas.

Os erros do moço também fazem a mãe se sentir errada. Ela sempre se pergunta em que momento errou na educação do filho, por que foi punida com uma descendência tão vergonhosa. Ela e ele se culpam por não poderem ser corretos e felizes como deveriam. Uma culpa que é, paradoxalmente, irresponsável. Como dissemos, ambos não acreditam na possibilidade de mudar as coisas, já que a origem dos distúrbios está em um campo que foge das suas responsabilidades. Uma culpa trágica, uma vez que não pode ser retirada. Como se tivessem contraído uma dívida que não pode ser paga, como se tivessem sido condenados à infelicidade. Os dois acabam por se perceberem como pessoas menos afortunadas, menos queridas por Deus ou pelo destino.

Mas, ao mesmo tempo, mãe e filho tocam as suas existências na esperança de que, um dia, a sorte bata em suas portas. Porém, para que a esperança nunca cesse, é necessário que as coisas nunca mudem de fato, que o “não tem jeito” prevaleça. A felicidade precisa ser uma promessa jamais cumprida.

Temos, no caso acima, o exemplo de um fracasso que tem como resultado oferecer um sentido para a vida de duas pessoas.

É possível que essa seja a forma mais comum de sentido para as existências humanas. Um impulso ao fracasso, ao erro, ao déficit, à culpa, à carência daquilo que nos faria felizes. Um sistema de oferta de significação que necessita, para o seu bom funcionamento, que permaneça desconhecido, que não saibamos da sua presença imperativa.

Certas pessoas, diante das expectativas frustradas, podem, aos 30, 40 ou mais ou menos anos, passar por uma crise de questionamentos sobre as suas vidas. Algumas delas podem ficar desanimadas, deprimidas, se considerando mais azaradas que as outras. É possível que outras se tornem cínicas, concluindo que a vida não é grande coisa, que os seres humanos são invariavelmente maus e o mundo uma porcaria sem solução. Os dois grupos ainda se encontram no campo do sentido da promessa de felicidade plena. Os deprimidos por acreditarem que outros têm a felicidade que não lhes foi dada. Os cínicos por manterem a fé que poderia haver um mundo cheio de seres bons e realizados.

Algumas pessoas, entretanto, ao se depararem com os seus fracassos, podem questionar o próprio sentido de sucesso. A psicanálise tem, em seus fundamentos, um caro exemplo dessa atitude. Em um determinado momento de seu trabalho, Freud se deu conta de que muitos pacientes, por mais que fossem analisados e esclarecidos de seus conflitos psíquicos, continuavam mantendo comportamentos que inevitavelmente lhes traziam sofrimentos. Ele, ao mesmo tempo, percebia que a sua Europa, culta e civilizada, se despedaçava em irracionalidades que resultariam em duas destrutivas guerras. Diante do insucesso clínico e social, Freud não ficou desanimado nem determinou a maldade intrínseca humana. Ele seguiu adiante inventado um novo conceito que ia além da ideia comum de que o homem busca a satisfação e a felicidade: a pulsão de morte. Pela primeira vez, um médico pôde dizer que seus pacientes, além das aparências, apresentavam um impulso irresistível para o fracasso, para o sofrimento, para a destruição.

Com outros questionamentos vindos da filosofia e das artes e após as experiências bélicas e totalitárias do último século (um século que, embalado pela razão, prometia o progresso, a paz e a felicidade), chegamos ao início do século XXI com a nossa inocência seriamente danificada.

Mas uma inocência não pode ter máculas. Uma vez que um rasgo nela se faz, ela está perdida. E uma inocência perdida não pode ser mais recuperada, fica datada. Talvez seja o momento de tentarmos criar uma nova forma de animarmos as nossas vidas, uma maneira de sustentarmos um novo sentido para as nossas existências.

Uma nova orientação que passe por reconhecermos a máquina de sentido que opera em nós, por encararmos que nossos sentidos são apenas promessas (e não seres concretos e acabados), por percebermos o caráter ilusório das existências, do nosso mundo e de nós mesmos. Em vez de um sentido final, um sentido ficcional.

Quem sabe possamos apostar que o mundo tem a mesma consistência de verdade que o Papai Noel. Para a maioria, o bom-velhinho não existe, é apenas uma invenção. Mas algumas crianças de sorte acreditam sinceramente na sua realidade. Se questionadas, dão provas da veracidade de Noel: os presentes deixados na noite de Natal ou mesmo a própria visão do velhinho e sua barba branca. Os mais vividos acham graça dessa crença pois sabem que o Papai Noel avistado não passa de um adulto disfarçado para corresponder à expectativa das crianças de encontrá-lo.

Talvez, no universo, algo também se disfarce diante dos nossos olhos para atender às nossas crenças, às nossas expectativas, à nossa vontade de ver.

Podemos lembrar que uma época sempre acha que as verdades das épocas que a precederam eram infantis. Adoramos perguntar: como os homens do passado puderam acreditar em tamanhas bobagens? Seria bom termos em conta que, enquanto a humanidade existir, a história não tem fim, que as nossas iluminadas, racionais, matemáticas e científicas verdades de hoje também serão motivo de espanto e riso em tempos por vir.

Se dizemos que nossa realidade é ficcional, que ela é inventada, na mesma hora argumentamos que, se fosse assim, bastaria querermos uma coisa para aquilo se realizar, o que parece não ter muito cabimento. Entretanto, é provável que a nossa capacidade de invenção esteja condicionada por uma possibilidade. Só algumas coisas podem ser inventadas em cada época, é impossível criar tudo (e o que seria essa possibilidade?). E toda criação, para poder existir, deve ter seu momento de começar e terminar.

Pode ser que experiência humana esteja em um momento de crise em razão das esperanças frustradas. Como dissemos, um tempo de perda da inocência. Se assim consideramos, podemos pensar em uma falência de tentarmos manter uma orientação de nossas vidas pela crença em um sentido pleno e final. Nos é possível, hoje em dia, saber que isso exige um fracasso contínuo, a condição de nos colocarmos sempre aquém da felicidade prometida.

Se não temos a expectativa de um sentido último, se encaramos que não há um ideal a ser atingido, se nos orientamos por um sentido que demanda uma criação sem fim da realidade, talvez tenhamos a possibilidade atual de inventarmos seres que não sejam culpados, errados, defeituosos, sofredores...