quarta-feira, 13 de julho de 2011

MEU CORPO, MEU INIMIGO

Qual é o grande vilão de nossas vidas? Qual o pior estraga-prazer, o maior obstáculo para sermos felizes em nossas existências? A resposta, cada vez mais, parece ser: o nosso corpo.

Na nossa sociedade, acredita-se que a maior parte das infelicidades que encontramos pelo caminho advêm do nosso organismo. Ele é o grande culpado pelas coisas não darem certo: não consigo meu amor porque tenho um corpo feio, porque meu metabolismo é lento e estou condenado à obesidade. Não consigo um bom resultado escolar ou não me dou bem nos empregos porque nasci com um cérebro menos inteligente, menos esperto. Se, por acaso, conquisto coisas que sempre sonhei em minha vida, um diabetes, uma dor constante nas costas, um joelho deslocado, o intestino não funcionando bem ou uma insônia sem trégua me impede de curtir. Se tenho sucesso nos negócios, se minha família é harmoniosa e carinhosa, o medo de um infarto, de um câncer ou de uma doença degenerativa não me deixa usufruir a vida em paz. Se finalmente vou transar com a garota que há tempos desejo, o receio de pegar uma doença me faz brochar. E, como se ainda fosse pouco, posso acabar sendo alvo de uma depressão causada pelo meu sistema nervoso que não produz serotonina como deveria.

Nosso corpo não nos dá sossego, está sempre cortando o nosso barato! Queremos saborear tranquilamente nosso churrasco, nosso chocolate, nossa pizza, mas ele está lá nos ameaçando: vamos engordar, vamos ficar feios, vamos adoecer, vamos sofrer. Gostaríamos de viver grandes experiências na vida (sexuais, esportivas ou outras aventuras), mas nossas condições físicas limitadas nos impedem. Por fim, com os anos, estamos condenados a uma decadência corporal que nos trará, de forma progressiva, privações e sofrimentos até que nosso organismo, totalmente contra a nossa vontade, vai parar de funcionar.

Dores, doenças, envelhecimento e morte: nosso corpo é insensivelmente cruel com nossos sonhos, com nossa busca pela felicidade.

Mas, para a nossa esperança, a ciência e a medicina estão trabalhando para que mudemos esse estado de coisas, para que nosso corpo encontre condições de se aprimorar, de se aperfeiçoar até que, um dia, possamos superar todas as nossas limitações físicas e finalmente sermos completamente felizes.

Adoecer e mesmo morrer não são mais condições que devemos aceitar como inevitáveis. Novas abordagens biológicas consideram que até mesmo o envelhecimento deve ser encarado como uma doença a ser tratada e no futuro eliminada. Como consequência dessa visão, podemos afirmar que, no mundo atual, o conceito do que é normal e do que é patológico mudou. Não se pode mais dizer que o normal é o mais comum, o que se espera para a maioria. Sabemos que todos os humanos adoecem, envelhecem e morrem, mas parece que consideramos que o normal seria nos livrarmos destas condições. O normal seria um estado novo, uma condição corporal que não só não é comum, como não existe. A doença não é uma exceção à regra, mas a própria regra. O normal é o que fugiria à norma, ao que é comum. O normal é que seria a exceção.

Nesse caminho, o corpo humano, para a medicina de hoje, é doente por natureza. Podemos até mesmo dizer que a natureza é patológica. Temos de nos livrar de nossa condição natural, temos de ir em busca de um mundo construído pela razão humana, um mundo ideal, de acordo com nossa vontade de sermos totalmente felizes. Enfim, um mundo sem dor, doença, envelhecimento ou morte. Um mundo sem o nosso corpo imperfeito. Em vez do corpo real, um novo corpo virtual, tão poderoso, forte e imortal como os das telas dos filmes ou dos games.

Tudo seria muito bom e bonito se não soubéssemos que, para se manter um ideal, devemos nunca alcançá-lo, temos de ficar só na promessa, temos de fracassar sempre. E o nosso fracasso em ter um corpo ideal é justamente continuarmos com dores e doentes. Dizemos que queremos a cura, mas damos um jeito dos tratamentos sempre falharem. Sofrendo, mantemos a esperança e, mantendo a esperança, sustentamos um norte para nossas vidas, um sentido final para nossas existências. Ficamos no lugar de vítimas de um corpo limitado que nos foi imposto, mas mantemos a expectativa de que um dia essa falta será reparada e poderemos finalmente retornar ao paraíso.

Não é de se estranhar que, apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, as pessoas têm de passar, cada vez mais, por procedimentos médicos. Hoje em dia, ocupamos boa parte do nosso tempo cuidando da saúde. A vida moderna se caracteriza por idas constantes aos médicos, exames e check-ups regulares, medidas preventivas de saúde. Consultórios, clínicas, hospitais e laboratórios tornaram-se quase a nossa segunda casa (todos com caras muitos amigáveis, alguns lembram bons hotéis). Devemos, em nossa vida diária, seguir uma série de limitações alimentares e comportamentais para não ficarmos doentes. Desde crianças temos de nos prevenir- já nascemos tomando comprimidos, vacinas, complementos alimentares. Crescemos e o número de pílulas se multiplica. É normal encontrar pessoas com 40 anos tomando cinco ou mais medicamentos, boa parte preventivos.

A cada novo dia, uma nova ameaça é descoberta (uma nova bactéria, um novo vírus, um novo agente cancerígeno) e a lista de restrições e cuidados só aumenta. Mesmo com todo o progresso científico, mesmo com todas as novíssimas máquinas de diagnóstico e tratamento, mesmo com todas as técnicas modernas de vigilância sanitária, mesmo com todas as ações governamentais para garantir a nossa boa saúde, nosso corpo parece sofrer perigos cada vez maiores. Quanto mais descobertas, mais novos problemas. Quanto mais expandimos nosso olhar sobre o mundo, maior o número de defeitos que encontramos.

E devemos não só seguir medidas que previnam doenças, mas também toda uma gama de procedimentos para não envelhecermos, para mantermos nosso corpo bonito. As especialidades de cuidados estéticos têm ganhado um enorme espaço dentro da medicina. Dermatologia estética e cirurgia plástica são as melhores escolhas para o jovem profissional interessado em ter uma grande clientela. Devemos lembrar: ser feio é patológico!

Nossa vida é, cada dia mais, organizada e pautada pela medicina. Ela é a base de uma nova moral, ela nos diz o que é certo ou errado fazer e quais punições receberemos caso não sigamos suas orientações. Os governos orientam suas políticas tendo em vista leis que garantam cidadãos mais saudáveis. Vivemos para ter saúde, para evitar que nosso corpo atrapalhe nossa busca pela felicidade.

Especula-se que, em pouco tempo, os gastos com saúde estarão entre os maiores de uma família. O setor de saúde será um dos grandes motores da economia nos próximos anos. E, para manter esse mercado aquecido, precisamos de muitos, muitos e muitos doentes. Definitivamente, não é a saúde que faz essa maquina girar.
Este é o paradoxo ou a contradição do ideal do corpo perfeito: para acreditamos em algo que é impossível, para não sabermos que se trata de uma ilusão, devemos seguir com nossas dores, com nossos sofrimentos, com nossas queixas e clamores de um mundo de perfeição. Temos de seguir doentes.

Mas, quem sabe, as coisas pudessem ser diferentes se, pelo menos, nos questionássemos sobre essa promessa a que, com tanto afinco, nos entregamos. Que corpo ideal é esse que dizemos buscar? Um corpo que nos permita realizar todos os nossos desejos e sonhos? E se pudéssemos realizar todos os nossos desejos e sonhos? A resposta: tédio, muito tédio. Só Deus tem o segredo de tudo poder fazer e não se entediar. Nós, mortais que somos, fazemos tudo para afastar a completude. Sabemos que o tédio é nosso alerta contra a falta de sentido na vida.

Estaríamos, então, condenados ao engano do ideal? Devemos seguir dizendo que queremos uma coisa e, na prática, fazermos tudo para que essa coisa não venha?

Talvez, exista uma outra forma de escaparmos do tédio, de nos mantermos animados . Podemos começar percebendo que nosso corpo não é perfeito nem imperfeito. Só podemos falar que nosso corpo é defeituoso ao compará-lo com um corpo que é impossível de existir (para termos um organismo invencível, teríamos de controlar todo o universo nos seus mínimos detalhes. Por exemplo, se a genética é a causa das doenças, devemos controlar o que causa as alterações genéticas e depois o que causa modificações nessa causa das alterações genéticas e, assim, sucessivamente, de causa em causa, em um movimento sem fim ou, para os que acreditam, até chegarmos à causa primeira: Deus. Por esse caminho, nosso ideal de cura é sermos Deus).

Sem um ideal de corpo para alcançar, deixamos de vê-lo como errado, defeituoso, patológico. E, se nunca conseguimos conhecer nosso corpo, podemos encará-lo como um mistério sem fim. Um mistério sempre presente e que nunca nos entedia. Um mistério que não convida à revelação, mas à invenção.

Em ciência, dizemos que estamos descobrindo coisas, que estamos progredindo em nosso conhecimento, porque acreditamos que isso teria um fim, um momento de tudo saber. De forma diferente, a psicanálise, ao não poder se orientar pelo ideal, aposta que fazemos ficções. As ficções nos servem em um determinado momento, elas nos permitem uma realidade, um mundo, mas elas nunca são o mundo.

Esclerose múltipla, ressonância magnética, fibromialgia, lipoaspiração, HPV, reposição de cálcio, psoríase, clonazepam, colesterol alto, linfoma, hérnia de disco, PSA e aneurisma de aorta são boas descobertas de nosso mundo. A psicanálise, por outra via, nos convida a invenção de uma nova realidade, de um corpo que não seja visto como um inimigo, mas como a nossa própria condição de existência.