Um amigo me contou que Pablo Neruda, para manter vivo o seu amor pela mulher, escrevia continuamente poemas dedicados a ela. Não chequei se essa informação bate com as referências biográficas do poeta, mas, verdadeira ou não, achei a história preciosa.
Talvez a grande dificuldade amorosa não seja encontrar alguém que nos desperte interesse, mas sim manter o encantamento após uma relação ter começado. Além do cumprimento das obrigações sociais (cada vez menos imperativas), como fazer para seguir com um relacionamento se apoiando apenas no amor pela outra pessoa?
O exemplo do poeta chileno nos mostra que o tempo de uma paixão é o tempo em que se consegue perceber o outro como fonte de inspiração, como algo que nos convida a uma criação permanente.
Diante de alguém que nos atrai, somos tomados pela dúvida que nos convida à invenção de respostas: o que tenho de fazer para conquistar essa pessoa? Enquanto não conseguimos seduzir o outro, enquanto nossas soluções não têm sucesso, a paixão e a criatividade se mantêm acesas. Mas basta nos convencermos de que a pessoa desejada nos ama para que ela perca imediatamente o seu lugar enigmático e provocador e nosso interesse escorra pelo ralo.
Então, para se continuar inventivo e apaixonado, é necessário que nunca conquistemos a pessoa amada? É provável que a resposta seja sim. Entretanto, pelo menos dois caminhos diferentes podemos trilhar tendo em vista essa condição.
Um caminho, amplamente seguido, diz que a nossa satisfação está em descobrirmos a pessoa certa, em termos a sorte ou o bom esforço de achar a pessoa que melhor nos completaria. Para ser satisfeito, preciso de algo que não tenho, algo que está fora de mim. Nesse esquema, para se manter o desejo, é preciso que aquilo que nos promete a felicidade esteja permanentemente distante de nós. Se tenho o que quero, o encanto se quebra. O amor não é para ser realizado.
Pelo o que meu amigo me contou, a mulher de Pablo Neruda não precisou dar o fora a vida toda para ser amada. O poeta soube vê-la como um enigma nunca conquistado mesmo estando próximo a ela. Deste modo, a história de Neruda nos oferece uma outra possibilidade: estar junto de quem se ama e manter a paixão animada.
Esse outro caminho passa por encararmos a impossibilidade de que qualquer pessoa possa nos completar, por sabermos que somos seres que necessitam estar incompletos para existir. Que, ao contrário do que muitos pesam, é esse impossível que nos anima, que nos mantém vivos. Precisamos estar sempre inventando. Se acreditamos em uma resposta definitiva, nos calamos.
Por essa via, amar equivale a criar e não a encontrar alguém que me faça completo, satisfeito e feliz. Amar sem poder jamais ser amado. A satisfação não está em algo exterior, em um ser definido e acabado que está à espera de mim. A felicidade é um ato criativo que não tem um fim, é apenas o exercício.
Eu, as pessoas, a realidade e o mundo: somos todos inconsistentes, inapreensíveis, impalpáveis, inalcançáveis, indefinidos, impenetráveis, imensuráveis e, assim como as mulheres, indomáveis, inconquistáveis e incompletáveis. Nunca poderemos dar a resposta sobre o que o outro quer de mim.
Mas, se não é para me trazer algo, se não é para me fazer mais feliz, para que serve então a pessoa amada?
Pelo caminho do poeta, quando encontramos alguém que amamos, mais do que oferecer um corpo sarado, riquezas, sabedoria, confortos, prazeres, segurança ou sucesso, podemos permitir a essa pessoa a possibilidade de amar, a oportunidade de criar.
Quando estamos na lógica do completar e ser completado, pensamos sempre no que deveríamos ter para satisfazer o outro, naquilo que nos falta para agradar a quem se ama. Como nunca conseguimos chegar lá, ficamos nos sentindo aquém, errados, menores. Permanecemos sonhando com aquele que deveríamos ser para sermos bem-amados. Imaginamos e nos cobramos ser uma outra pessoa, temos um ideal de nós mesmos. No fundo, não gostamos de quem somos. Quando estamos tentando seduzir alguém, vestimos a nossa fantasia, tentamos representar um personagem na tentativa de fazer o outro acreditar que podemos completá-lo. E já que a completude é uma ilusão, a única forma de não deixar a máscara cair é se mantendo bem longe da pessoa desejada. Tornamos o amor um eterno desencontro.
Entretanto, se desistimos de satisfazer os outros, gostamos de uma pessoa não por aquilo que ela deveria ser, pela imagem que ela nos vende, mas por aquilo que ela é, ou seja, um imponderável mistério. Nessa possibilidade, não amamos o ideal que nos é apresentado, mas aquilo que alguém porta de impossível, além da imagem, algo que transcende qualquer sentido, aquilo que faz do outro um ser encantado. No amor poético, pedimos, como na música de Chico Buarque, para a pessoa amada vir sem fantasia.
Ao acolhermos o outro em sua incompletude, o autorizamos nessa condição. Em vez de ficarmos cobrando as pessoas por aquilo que elas deveriam nos dar para sermos felizes, em vez de paralisarmos os outros em culpas e dívidas, podemos ofertar a liberdade para amar. Fazer falar quem está calado, fazer inventar quem está sem saída. Diante da dura e inegociável indiferença do mundo para com os nossos planos, ideais ou ambições, se quisermos seguir adiante em nossas existências, precisamos permanentemente de novas criações, precisamos estar amando. Nada pior para um artista, dos palcos ou da vida, do que deixar de amar, do que não ter a autorização de ser incompleto.
Para permitir o amor em alguém, não devemos ter medo de perder, necessitamos não ter inveja ou ciúmes. Se for o caso, precisamos até mesmo deixar o outro ir e, como na poesia de Roberto e Erasmo, não ter receio de dizer: você pode até gostar de outro rapaz que lhe dê amor, carinho e muito mais. O poeta, coitado, só pode oferecer coisas sem valor e inúteis. Para o seu bem, só pode dar o céu, o infinito.
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
AMOR IDEAL OU AMOR REAL: SER TUDO DISTANTE OU SER NADA PRESENTE
Ver um corpo bonito na rua, na academia, em uma revista, na televisão ou na internet pode nos deixar excitados. Como seríamos felizes se pudéssemos nos aproximar, tocar, apertar, cheirar, fazer o uso que bem quiséssemos daquelas pernas, daquela boca, daquele narizinho ou narigão, daqueles dedos ou de qualquer outra parte da anatomia que cativar os nossos olhos. Que satisfação seria possuir o corpo da pessoa desejada!
A lembrança visual pode, depois, servir de estímulo para a criação de inúmeras fantasias, de enredos variados que conduzem inevitavelmente para a submissão da outra pessoa às nossas vontades. Podemos gozar dessas fabulações tanto sozinhos quanto quando estamos na companhia de alguém e precisamos de uma animação extra. Em ambos os casos, transamos com imagens que alimentam a esperança de um encontro com um corpo perfeito.
Mas o encanto com uma determinada fantasia não costuma durar muito. Logo a repetição daquelas cenas não provoca a mesma euforia do começo. Precisamos de uma nova seqüência, de novas histórias ou, quem sabe, de novos personagens.
Pode ser que mantenhamos a mesma pessoa como protagonista de nossos sonhos quando temos contato com ela com certa frequência, mas com a condição de que encontremos obstáculos permanentes para a realização do nosso desejo de possuí-la. A pessoa querida é compromissada, pode ser boa demais pra mim, quem sabe jogue em outro time ou simplesmente não goste de mim como eu dela.
E se, por um acaso qualquer, temos a oportunidade de nos relacionar com a pessoa desejada, em um primeiro momento ficamos entusiasmados, como que embriagados pela fantasia de um outro ideal. Mas depois, com o tempo, aquele par de pernas já não parece mais tão encantador; aquelas nádegas, embora tenham as mesmas proporções, parecem não possuir a perfeição de antes.
Por mais perfeitas que sejam as medidas, por mais jovial que seja a pele, por mais rígidos que sejam os músculos, por menor que seja a gordura abdominal, um corpo pode não passar de um pedaço de carne sem nenhum charme para aquele que acredita tê-lo conquistado.
Azar das mulheres ou dos homens, tão comuns hoje em dia, que colocam toda a sua esperança de ser feliz no amor em se ter um corpo dentro dos padrões de juventude e magreza cobrados pela sociedade. Depois de tantos sacrifícios, correm o risco de ficar a ver navios. A sedução não está naquilo que se pode dar ou oferecer, nos nossos dotes que completariam o outro. Ao contrário, o encantamento vem daquilo que não temos para dar, daquilo que em nós que se mostra impossível de ser conquistado ou possuído. Por isso, para se manter a nossa fantasia, o nosso ideal de perfeição, é necessário que estejamos permanentemente distantes da pessoa desejada. Os bons sedutores sabem disto: prometem, prometem, mas, na hora agá, dão sempre um jeito de pular fora. Deixam só o gostinho na boca.
Então, para se manter o encantamento, a paixão, o amor, estaríamos condenados a um eterno desencontro? Devemos ficar apenas na vontade, na promessa, na insatisfação, no sonho não realizado?
Se buscamos um encontro perfeito, se estamos à procura de um outro que nos complete, a resposta é sim. Para se manter um ideal impossível, é necessário nunca alcançá-lo. O que importa não é a realização, mas a manutenção da esperança, da crença na completude e em um sentido final para as nossas vidas.
A pessoa que devota a sua vida à expectativa de ser bem amada, acaba sempre no lugar de mal amada, de carente: a minha satisfação está naquilo que não tenho. Em um mundo em que as promessas de felicidade são tão fortes como o nosso, não é de se estranhar a epidemia de frustração, baixa estima e desânimo. O parceiro daqueles que buscam se satisfazer totalmente pode terminar sendo um nem sempre fiel antidepressivo.
Uma outra possibilidade seria se conseguíssemos olhar para alguém não como um Deus ou Deusa, mas como um simples mortal. Em vez de uma promessa duvidosa de um encontro com algo concreto que nos completaria, a certeza de estarmos diante de um ser fugaz, incerto, nebuloso, inapreensível. O difícil acontecimento de que vejamos o outro além das imagens e dos sentidos que o mundo nos oferta. Enxergamos não uma perna ideal ou um mero pedaço de carne, mas um mistério, um nada que no entanto existe e está presente.
Um amor que não esteja marcado pela falta, pela expectativa de alguém que nos complete, pela cobrança de que o outro me dê aquilo que eu quero, por uma relação de dívida.
Mas como fazer para se conseguir essa visão, para se ter esses olhos?
Talvez a resposta passe por não se querer isso. Que possa acontecer, se for o caso. Querer alguma coisa é da ordem da falta, de se buscar algo que nos faria mais felizes ou melhores. Se nos enxergamos assim, como faltantes, não encaramos a nossa impossibilidade de nos completarmos. E, se nos percebemos como carentes, do mesmo modo vemos os outros à nossa volta. Como pessoas carentes não são amadas, continuaremos amando apenas um ser perfeito e para sempre distante.
A lembrança visual pode, depois, servir de estímulo para a criação de inúmeras fantasias, de enredos variados que conduzem inevitavelmente para a submissão da outra pessoa às nossas vontades. Podemos gozar dessas fabulações tanto sozinhos quanto quando estamos na companhia de alguém e precisamos de uma animação extra. Em ambos os casos, transamos com imagens que alimentam a esperança de um encontro com um corpo perfeito.
Mas o encanto com uma determinada fantasia não costuma durar muito. Logo a repetição daquelas cenas não provoca a mesma euforia do começo. Precisamos de uma nova seqüência, de novas histórias ou, quem sabe, de novos personagens.
Pode ser que mantenhamos a mesma pessoa como protagonista de nossos sonhos quando temos contato com ela com certa frequência, mas com a condição de que encontremos obstáculos permanentes para a realização do nosso desejo de possuí-la. A pessoa querida é compromissada, pode ser boa demais pra mim, quem sabe jogue em outro time ou simplesmente não goste de mim como eu dela.
E se, por um acaso qualquer, temos a oportunidade de nos relacionar com a pessoa desejada, em um primeiro momento ficamos entusiasmados, como que embriagados pela fantasia de um outro ideal. Mas depois, com o tempo, aquele par de pernas já não parece mais tão encantador; aquelas nádegas, embora tenham as mesmas proporções, parecem não possuir a perfeição de antes.
Por mais perfeitas que sejam as medidas, por mais jovial que seja a pele, por mais rígidos que sejam os músculos, por menor que seja a gordura abdominal, um corpo pode não passar de um pedaço de carne sem nenhum charme para aquele que acredita tê-lo conquistado.
Azar das mulheres ou dos homens, tão comuns hoje em dia, que colocam toda a sua esperança de ser feliz no amor em se ter um corpo dentro dos padrões de juventude e magreza cobrados pela sociedade. Depois de tantos sacrifícios, correm o risco de ficar a ver navios. A sedução não está naquilo que se pode dar ou oferecer, nos nossos dotes que completariam o outro. Ao contrário, o encantamento vem daquilo que não temos para dar, daquilo que em nós que se mostra impossível de ser conquistado ou possuído. Por isso, para se manter a nossa fantasia, o nosso ideal de perfeição, é necessário que estejamos permanentemente distantes da pessoa desejada. Os bons sedutores sabem disto: prometem, prometem, mas, na hora agá, dão sempre um jeito de pular fora. Deixam só o gostinho na boca.
Então, para se manter o encantamento, a paixão, o amor, estaríamos condenados a um eterno desencontro? Devemos ficar apenas na vontade, na promessa, na insatisfação, no sonho não realizado?
Se buscamos um encontro perfeito, se estamos à procura de um outro que nos complete, a resposta é sim. Para se manter um ideal impossível, é necessário nunca alcançá-lo. O que importa não é a realização, mas a manutenção da esperança, da crença na completude e em um sentido final para as nossas vidas.
A pessoa que devota a sua vida à expectativa de ser bem amada, acaba sempre no lugar de mal amada, de carente: a minha satisfação está naquilo que não tenho. Em um mundo em que as promessas de felicidade são tão fortes como o nosso, não é de se estranhar a epidemia de frustração, baixa estima e desânimo. O parceiro daqueles que buscam se satisfazer totalmente pode terminar sendo um nem sempre fiel antidepressivo.
Uma outra possibilidade seria se conseguíssemos olhar para alguém não como um Deus ou Deusa, mas como um simples mortal. Em vez de uma promessa duvidosa de um encontro com algo concreto que nos completaria, a certeza de estarmos diante de um ser fugaz, incerto, nebuloso, inapreensível. O difícil acontecimento de que vejamos o outro além das imagens e dos sentidos que o mundo nos oferta. Enxergamos não uma perna ideal ou um mero pedaço de carne, mas um mistério, um nada que no entanto existe e está presente.
Um amor que não esteja marcado pela falta, pela expectativa de alguém que nos complete, pela cobrança de que o outro me dê aquilo que eu quero, por uma relação de dívida.
Mas como fazer para se conseguir essa visão, para se ter esses olhos?
Talvez a resposta passe por não se querer isso. Que possa acontecer, se for o caso. Querer alguma coisa é da ordem da falta, de se buscar algo que nos faria mais felizes ou melhores. Se nos enxergamos assim, como faltantes, não encaramos a nossa impossibilidade de nos completarmos. E, se nos percebemos como carentes, do mesmo modo vemos os outros à nossa volta. Como pessoas carentes não são amadas, continuaremos amando apenas um ser perfeito e para sempre distante.
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
A PESSOA CERTA
Quando estamos diante de uma possibilidade de relacionamento sempre nos perguntamos se a pessoa em questão é a melhor para nós. Inicialmente pensamos nas afinidades, nas características em comum que nos garantiriam que a relação funcionaria bem. Consideramos também o que o outro tem para nos oferecer, no que se pode ganhar e aprender. Por fim, lembramos de nós mesmos, dos nossos gostos, da nossa maneira de ser, do que podemos dar para quem está conosco. Usamos uma lógica que se pauta no levantamentos dos pontos de similaridade e de diferença, percebendo como diferenças positivas aquilo que um poderia trocar com o outro enquanto juntos. Nesse projeto, os dois, com o tempo, encontrariam cada vez mais sintonia, estariam cada vez mais próximos.
Ela é arquiteta em início de carreira, eu sou um advogado experiente. Ele é de peixes, eu sou de capricórnio. Ele fala quatro línguas, eu mal português. Ela tem duas filhas pequenas, eu gosto de sair na balada. Ele gosta de acordar tarde, eu também. Ela é sonhadora, eu sou mais pé no chão. Ele é baiano e eu gosto de gente alegre. Nessa matemática, cruzamos as várias informações para no final darmos o veredicto sobre quem seria a pessoa correta a escolher. A idéia é encontrar aquele que melhor se encaixaria em mim, aquela que mais me faria feliz. Um ideal de complemento.
O problema é que muitas vezes, na prática, o coração não segue o nosso bom cálculo e insistimos em gostar da pessoa errada: ela não tem nada a ver comigo, mas é ela que eu amo. A escolha afetiva, ao contrário da racional, aparenta guiar-se por uma atração pela encrenca, por aquilo que se mostra difícil de conquistar.
Mais que qualquer característica ou traço pessoal, o que nos atrai parece ser a dificuldade. Mesmo as condições que gostamos de apontar como responsáveis por sermos queridos não passam de sinalizadores de alguém cuja conquista se mostra árdua: quanto mais bonita, mas rico, mas charmoso ou mais sábia, maior é a concorrência, maior a chance de não termos tal pessoa. Ser atraente é estar marcado por uma possibilidade de perda.
Se parecemos muitas vezes buscar certas características nas pessoas que gostamos, é porque elas sinalizam para nós justamente algo que nos escapa, algo que supomos ter perdido.
Se, por acaso, encontramos alguém que tem uma certa condição que nos atrai e essa pessoa, com o tempo, se mostrar apaixonada, totalmente entregue a nós, a marca que nos seduzia perde o seu valor, o seu encanto. Por exemplo, uma mulher pode se interessar por um cara e lhe dizer: nossa, você é goiano, loiro e de gêmeos! Você é a pessoa certa para mim. O rapaz pode ficar feliz com isto. Se ele for estudante de psicanálise pode ficar ainda mais contente ao descobrir que as características citadas pela moça são as mesmas do pai dela. Aí ele se convence de que ela realmente gosta de homens geminianos, loiros e goianos, e, como ele porta tais sinais, é a melhor pessoa para ela. Aí ele dança. Corre o risco de ser inexplicavelmente trocado por um pernambucano moreno e de escorpião.
Ao dizer eu sou o seu homem, a semelhança com o pai da moça desaparece. O pai indica uma perda, um amor proibido, uma promessa nunca alcançada de felicidade. Ao responder sim ao apelo amoroso, loiro, goiano ou geminiano deixaram de ser sinais do pai.
Em relação às expectativas amorosas, estamos sempre queixando: ou nos falta amor e somos desprezados ou temos amor demais e somos sufocados. Se nos amamos mutuamente, obstáculos ou rivais nos impedem de concretizar a relação. O resultado pode ser um constante desencontro: gosto de quem não gosta de mim ou de alguém que não posso ter. Mas seguimos alimentando esperanças: no fundo ela gosta de mim, mas não tem coragem de reconhecer. Deus ou o destino vai dar um jeito de trazer o meu amor para perto de mim. O problema é que quando, por acaso, recebemos um sim da pessoa desejada, logo nos decepcionamos, perdemos o interesse, a paixão se cala: não era bem ela que eu queria. Agora que conheço ele melhor, vejo que não tem nada a ver comigo.
Inventamos as mais furadas desculpas para justificar o nosso desinteresse afetivo. Qualquer defeito se transforma numa prova definitiva do mau caráter e da incompatibilidade do outro. Como conseqüência dessa insatisfação permanente, nos meios sociais mais tradicionais, naqueles em que ainda valem os compromissos de se casar e se constituir família, encontramos cônjuges que não se sentem atraídos um pelo outro e constantes pulos de cerca, tanto dos maridos quanto das esposas. Nos círculos em que os compromissos sociais são menos imperativos, encontramos uma troca freqüentes de parceiros. A atração e o encanto podem durar apenas o tempo de um baile, uma balada ou uma noitada.
Estar satisfeito com o amor que se encontra parece ser muito raro. Enquanto esperamos um amor de complemento, ficamos sempre insatisfeitos. É impossível alguém que nos satisfaça totalmente, alguém que nos complete. A única forma de acreditarmos nisto é nunca alcançando o ideal pretendido. Damos sempre um jeito da coisa dar errado. Parece que o importante não é encontrar o amor, mas manter a máquina que nos faz acreditar que um dia poderemos encontrar um amor final, um sentido último para as nossas vidas. Qualquer coisa que ameace o funcionamento desse aparelho de sentido ilusório deve ser eliminada de nosso horizonte. Defendemos com unhas e dentes a nossa ilusão, o nosso engano, as nossas mentiras: é melhor não saber disso.
Mas teríamos outra alternativa? Como manter o amor por alguém se o que sustenta a paixão é a dificuldade, a distância, a eterna marca de algo que não se tem?
Para dar essa difícil resposta talvez devêssemos pensar que nossa dor é mais profunda. Não se trata de recuperar algo que se perdeu ou de ganhar algo que nos falta, mas perceber o amor como um encontro com aquilo que nunca tivemos nem nunca teremos, aquilo que nos é impossível, aquilo que faz da vida e do outro um mistério absurdo e inalcançável. Só essa sombra permite o encanto, a paixão.
Uma tarefa árdua. Estamos acostumados a ver e a medir as pessoas à nossa volta pela sua imagem, pela sua aparência, por aquilo que elas nos teriam para nos completar, por aquilo que seria claro e racional. Ela é rica, ele é alto, ela é medrosa, ele é sem-vergonha, ela é interesseira: como anulamos imediatamente o amor ao tentarmos, o tempo todo, enquadrar a pessoa desejada dentro de uma determinada categoria. Quanto as psicologias nos ajudam nesse vício com as suas classificações e receitas.
Parece que morremos de medo de amar. Amar exige que nos mantenhamos na incerteza, na surpresa, no acidente, na incompletude. Precisamos olhar para o outro e não vê-lo, enxergá-lo como um fantasma. Alguém que nunca possuiremos, alguém que nos escapa permanentemente, uma pessoa que desde o princípio estamos condenados a perder, um mortal.
O amor talvez exija alguém que possua a coragem de seguir amando sem o medo de não ser amado, alguém que não tema caminhar no desconhecido. Como no verso de Drummond, alguém que saiba amar depois de perder. Alguém que suporte a angústia de não se deixar enquadrar em nenhum lugar imaginário e que, assim, permita a quem está ao seu lado a possibilidade viver a experiência rara de amar.
Ela é arquiteta em início de carreira, eu sou um advogado experiente. Ele é de peixes, eu sou de capricórnio. Ele fala quatro línguas, eu mal português. Ela tem duas filhas pequenas, eu gosto de sair na balada. Ele gosta de acordar tarde, eu também. Ela é sonhadora, eu sou mais pé no chão. Ele é baiano e eu gosto de gente alegre. Nessa matemática, cruzamos as várias informações para no final darmos o veredicto sobre quem seria a pessoa correta a escolher. A idéia é encontrar aquele que melhor se encaixaria em mim, aquela que mais me faria feliz. Um ideal de complemento.
O problema é que muitas vezes, na prática, o coração não segue o nosso bom cálculo e insistimos em gostar da pessoa errada: ela não tem nada a ver comigo, mas é ela que eu amo. A escolha afetiva, ao contrário da racional, aparenta guiar-se por uma atração pela encrenca, por aquilo que se mostra difícil de conquistar.
Mais que qualquer característica ou traço pessoal, o que nos atrai parece ser a dificuldade. Mesmo as condições que gostamos de apontar como responsáveis por sermos queridos não passam de sinalizadores de alguém cuja conquista se mostra árdua: quanto mais bonita, mas rico, mas charmoso ou mais sábia, maior é a concorrência, maior a chance de não termos tal pessoa. Ser atraente é estar marcado por uma possibilidade de perda.
Se parecemos muitas vezes buscar certas características nas pessoas que gostamos, é porque elas sinalizam para nós justamente algo que nos escapa, algo que supomos ter perdido.
Se, por acaso, encontramos alguém que tem uma certa condição que nos atrai e essa pessoa, com o tempo, se mostrar apaixonada, totalmente entregue a nós, a marca que nos seduzia perde o seu valor, o seu encanto. Por exemplo, uma mulher pode se interessar por um cara e lhe dizer: nossa, você é goiano, loiro e de gêmeos! Você é a pessoa certa para mim. O rapaz pode ficar feliz com isto. Se ele for estudante de psicanálise pode ficar ainda mais contente ao descobrir que as características citadas pela moça são as mesmas do pai dela. Aí ele se convence de que ela realmente gosta de homens geminianos, loiros e goianos, e, como ele porta tais sinais, é a melhor pessoa para ela. Aí ele dança. Corre o risco de ser inexplicavelmente trocado por um pernambucano moreno e de escorpião.
Ao dizer eu sou o seu homem, a semelhança com o pai da moça desaparece. O pai indica uma perda, um amor proibido, uma promessa nunca alcançada de felicidade. Ao responder sim ao apelo amoroso, loiro, goiano ou geminiano deixaram de ser sinais do pai.
Em relação às expectativas amorosas, estamos sempre queixando: ou nos falta amor e somos desprezados ou temos amor demais e somos sufocados. Se nos amamos mutuamente, obstáculos ou rivais nos impedem de concretizar a relação. O resultado pode ser um constante desencontro: gosto de quem não gosta de mim ou de alguém que não posso ter. Mas seguimos alimentando esperanças: no fundo ela gosta de mim, mas não tem coragem de reconhecer. Deus ou o destino vai dar um jeito de trazer o meu amor para perto de mim. O problema é que quando, por acaso, recebemos um sim da pessoa desejada, logo nos decepcionamos, perdemos o interesse, a paixão se cala: não era bem ela que eu queria. Agora que conheço ele melhor, vejo que não tem nada a ver comigo.
Inventamos as mais furadas desculpas para justificar o nosso desinteresse afetivo. Qualquer defeito se transforma numa prova definitiva do mau caráter e da incompatibilidade do outro. Como conseqüência dessa insatisfação permanente, nos meios sociais mais tradicionais, naqueles em que ainda valem os compromissos de se casar e se constituir família, encontramos cônjuges que não se sentem atraídos um pelo outro e constantes pulos de cerca, tanto dos maridos quanto das esposas. Nos círculos em que os compromissos sociais são menos imperativos, encontramos uma troca freqüentes de parceiros. A atração e o encanto podem durar apenas o tempo de um baile, uma balada ou uma noitada.
Estar satisfeito com o amor que se encontra parece ser muito raro. Enquanto esperamos um amor de complemento, ficamos sempre insatisfeitos. É impossível alguém que nos satisfaça totalmente, alguém que nos complete. A única forma de acreditarmos nisto é nunca alcançando o ideal pretendido. Damos sempre um jeito da coisa dar errado. Parece que o importante não é encontrar o amor, mas manter a máquina que nos faz acreditar que um dia poderemos encontrar um amor final, um sentido último para as nossas vidas. Qualquer coisa que ameace o funcionamento desse aparelho de sentido ilusório deve ser eliminada de nosso horizonte. Defendemos com unhas e dentes a nossa ilusão, o nosso engano, as nossas mentiras: é melhor não saber disso.
Mas teríamos outra alternativa? Como manter o amor por alguém se o que sustenta a paixão é a dificuldade, a distância, a eterna marca de algo que não se tem?
Para dar essa difícil resposta talvez devêssemos pensar que nossa dor é mais profunda. Não se trata de recuperar algo que se perdeu ou de ganhar algo que nos falta, mas perceber o amor como um encontro com aquilo que nunca tivemos nem nunca teremos, aquilo que nos é impossível, aquilo que faz da vida e do outro um mistério absurdo e inalcançável. Só essa sombra permite o encanto, a paixão.
Uma tarefa árdua. Estamos acostumados a ver e a medir as pessoas à nossa volta pela sua imagem, pela sua aparência, por aquilo que elas nos teriam para nos completar, por aquilo que seria claro e racional. Ela é rica, ele é alto, ela é medrosa, ele é sem-vergonha, ela é interesseira: como anulamos imediatamente o amor ao tentarmos, o tempo todo, enquadrar a pessoa desejada dentro de uma determinada categoria. Quanto as psicologias nos ajudam nesse vício com as suas classificações e receitas.
Parece que morremos de medo de amar. Amar exige que nos mantenhamos na incerteza, na surpresa, no acidente, na incompletude. Precisamos olhar para o outro e não vê-lo, enxergá-lo como um fantasma. Alguém que nunca possuiremos, alguém que nos escapa permanentemente, uma pessoa que desde o princípio estamos condenados a perder, um mortal.
O amor talvez exija alguém que possua a coragem de seguir amando sem o medo de não ser amado, alguém que não tema caminhar no desconhecido. Como no verso de Drummond, alguém que saiba amar depois de perder. Alguém que suporte a angústia de não se deixar enquadrar em nenhum lugar imaginário e que, assim, permita a quem está ao seu lado a possibilidade viver a experiência rara de amar.
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
A TRANSITORIEDADE, KEATS OU NIEMEYER
É provável que dois incômodos surjam em quem assisti ao filme (acho que ainda em cartaz) O Brilho de Uma Paixão. Os dois relacionados a um sentimento de perda pela morte prematura (aos 25 anos) do poeta inglês John Keats cuja história é contada no filme. O primeiro pela perda de anos a mais de vida que teriam proporcionado ao poeta a oportunidade de continuar criando belos poemas. O segundo pela frustração diante da perda da possibilidade de Keats e sua amada conseguirem finalmente se casar e, assim, concretizar o amor que nutriam um pelo outro.
Quantos jovens artistas, no passado e ainda hoje, deixam o mundo no auge da sua criatividade, todos a nos causar o lamento das obras-primas que poderiam ter realizado caso tivessem a chance de, pelo menos, chegar à maturidade. Sendo artista ou não, toda vida que se vai ainda nos seus primeiros anos nos traz a saudade daquilo que poderia ter sido vivido e compartilhado.
Talvez fiquemos mais confortáveis diante do exemplo do arquiteto Oscar Niemeyer que, às vésperas de completar 103 anos, segue desenhando projetos de edifícios no Brasil e no mundo. Se tivesse morrido logo após fazer Pampulha, não teríamos conhecido o novo Itamaraty, o memorial JK ou o teatro do Ibirapuera. Não haveria a rampa do Planalto, as cúpulas invertidas do Congresso ou as colunas em curva do Alvorada. Brasília seria outra; tão diferente que quem sabe pudéssemos afirmar que a cidade não existiria. Mesmo que tivesse o mesmo nome, não seria Brasília. Tentar imaginá-la sem a marca do arquiteto é impossível.
Mas só sabemos o que ganhamos com a longevidade de Niemeyer porque podemos acompanhar o que ele criou com os anos que teve. Um saber posterior. No caso daqueles que viveram por períodos mais curtos de tempo, nada podemos dizer sobre o que teriam feito se tivessem a chance de uns anos a mais, nem mesmo se teriam sido mais ou menos felizes. O que não existiu, não existe. As possibilidades são infinitas.
Assim como é provável que não existisse Brasília caso Niemeyer tivesse partido aos vinte e poucos anos, se John Keats tivesse morrido aos 50 ou aos 87 anos, ele não teria sido John Keats. Pelo menos não na forma como o conhecemos. Teria sido um outro que não podemos estabelecer qual, a não ser como exercício de ficção.
Em qualquer caso, não podemos colocar o valor de uma vida naquilo que deveria ter sido realizado ou naquilo que teria faltado. Um vida curta ou uma vida centenária encontram seu valor tão somente no fato de terem um momento de começo e um momento de fim. Toda vida humana é limitada por um nascido em tal data e um falecido em tal data. Um início e um fim (ambos de um mistério absurdo e inalcançável) são as condições para a existência de uma pessoa. Se pequena ou longa, a distância entre os dois é o que menos importa. Quinze ou 108 anos não fazem muita diferença no Universo. A brevidade é que dá o contorno para uma vida. Por não serem eternas é que as coisas existem. Se há um começo, há um término. O que é eterno está fora do tempo, está fora da existência.
No entanto, passamos a vida nos queixando de não sermos eternos, de não podermos ter tudo. Muitas vezes temos medo de amar uma pessoa ou deixamos de gostar de uma coisa porque elas estão marcadas pela possibilidade de perda, por não podermos tê-las para sempre, por serem transitórias.
Em 1916, Freud publicou um pequeno texto chamado A Transitoriedade no qual ele relata o caso de um jovem escritor que o acompanhava em uma viagem e que se recusava a apreciar as belezas à sua volta porque, um dia, elas deixariam de existir.
Freud refutou o escritor defendendo que o valor e a raridade das coisas estão justamente no fato delas serem finitas, na sua brevidade. No entanto, os argumentos do psicanalista não produziram efeitos no amigo. Ele manteve o seu clamor de que só o que é eterno é que tem valor.
Quem concorda com o escritor talvez não consiga desfrutar a vida pelo fato de exigir algo que não se pode ter: a eternidade, a perfeição. Quem pede o impossível passa a vida se queixando.
Mas pensemos em como seria se, por uma fortuna qualquer, o queixoso tivesse as suas preces atendidas? Como seria a existência de uma pessoa que nunca morre, que tem todos os seu desejos atendidos, que tem tudo o que quer? A resposta é fácil: completamente sem graça, sem sabor, um tédio absoluto. Quem sabe, por isto, é que nos mantemos sempre bem afastados daquilo nos satisfaria, o nosso receio de termos aquilo que dizemos querer. Melhor e mais seguro ficar só na queixa, na espera. Ideais devem existir apenas como promessa.
Reclamamos do fato de não sermos Deus, mas morremos de medo de um dia sê-lo. Se encontrássemos a imortalidade, como no caso de nos tornarmos vampiros, rezaríamos secretamente para que alguém enfiasse uma estaca em nosso peito e nos desse um fim.
John Keats, o mesmo poeta que escreveu que tudo que é belo é uma alegria pra sempre, antes de morrer, pediu que seu nome não fosse gravado em seu túmulo. Preferiu apenas a frase “Aqui jaz alguém cujo nome foi escrito n’água”. Talvez ele soubesse que a beleza e o sabor de uma vida estão na sua precariedade, na sua fugacidade, na sua inscrição na água.
Quantos jovens artistas, no passado e ainda hoje, deixam o mundo no auge da sua criatividade, todos a nos causar o lamento das obras-primas que poderiam ter realizado caso tivessem a chance de, pelo menos, chegar à maturidade. Sendo artista ou não, toda vida que se vai ainda nos seus primeiros anos nos traz a saudade daquilo que poderia ter sido vivido e compartilhado.
Talvez fiquemos mais confortáveis diante do exemplo do arquiteto Oscar Niemeyer que, às vésperas de completar 103 anos, segue desenhando projetos de edifícios no Brasil e no mundo. Se tivesse morrido logo após fazer Pampulha, não teríamos conhecido o novo Itamaraty, o memorial JK ou o teatro do Ibirapuera. Não haveria a rampa do Planalto, as cúpulas invertidas do Congresso ou as colunas em curva do Alvorada. Brasília seria outra; tão diferente que quem sabe pudéssemos afirmar que a cidade não existiria. Mesmo que tivesse o mesmo nome, não seria Brasília. Tentar imaginá-la sem a marca do arquiteto é impossível.
Mas só sabemos o que ganhamos com a longevidade de Niemeyer porque podemos acompanhar o que ele criou com os anos que teve. Um saber posterior. No caso daqueles que viveram por períodos mais curtos de tempo, nada podemos dizer sobre o que teriam feito se tivessem a chance de uns anos a mais, nem mesmo se teriam sido mais ou menos felizes. O que não existiu, não existe. As possibilidades são infinitas.
Assim como é provável que não existisse Brasília caso Niemeyer tivesse partido aos vinte e poucos anos, se John Keats tivesse morrido aos 50 ou aos 87 anos, ele não teria sido John Keats. Pelo menos não na forma como o conhecemos. Teria sido um outro que não podemos estabelecer qual, a não ser como exercício de ficção.
Em qualquer caso, não podemos colocar o valor de uma vida naquilo que deveria ter sido realizado ou naquilo que teria faltado. Um vida curta ou uma vida centenária encontram seu valor tão somente no fato de terem um momento de começo e um momento de fim. Toda vida humana é limitada por um nascido em tal data e um falecido em tal data. Um início e um fim (ambos de um mistério absurdo e inalcançável) são as condições para a existência de uma pessoa. Se pequena ou longa, a distância entre os dois é o que menos importa. Quinze ou 108 anos não fazem muita diferença no Universo. A brevidade é que dá o contorno para uma vida. Por não serem eternas é que as coisas existem. Se há um começo, há um término. O que é eterno está fora do tempo, está fora da existência.
No entanto, passamos a vida nos queixando de não sermos eternos, de não podermos ter tudo. Muitas vezes temos medo de amar uma pessoa ou deixamos de gostar de uma coisa porque elas estão marcadas pela possibilidade de perda, por não podermos tê-las para sempre, por serem transitórias.
Em 1916, Freud publicou um pequeno texto chamado A Transitoriedade no qual ele relata o caso de um jovem escritor que o acompanhava em uma viagem e que se recusava a apreciar as belezas à sua volta porque, um dia, elas deixariam de existir.
Freud refutou o escritor defendendo que o valor e a raridade das coisas estão justamente no fato delas serem finitas, na sua brevidade. No entanto, os argumentos do psicanalista não produziram efeitos no amigo. Ele manteve o seu clamor de que só o que é eterno é que tem valor.
Quem concorda com o escritor talvez não consiga desfrutar a vida pelo fato de exigir algo que não se pode ter: a eternidade, a perfeição. Quem pede o impossível passa a vida se queixando.
Mas pensemos em como seria se, por uma fortuna qualquer, o queixoso tivesse as suas preces atendidas? Como seria a existência de uma pessoa que nunca morre, que tem todos os seu desejos atendidos, que tem tudo o que quer? A resposta é fácil: completamente sem graça, sem sabor, um tédio absoluto. Quem sabe, por isto, é que nos mantemos sempre bem afastados daquilo nos satisfaria, o nosso receio de termos aquilo que dizemos querer. Melhor e mais seguro ficar só na queixa, na espera. Ideais devem existir apenas como promessa.
Reclamamos do fato de não sermos Deus, mas morremos de medo de um dia sê-lo. Se encontrássemos a imortalidade, como no caso de nos tornarmos vampiros, rezaríamos secretamente para que alguém enfiasse uma estaca em nosso peito e nos desse um fim.
John Keats, o mesmo poeta que escreveu que tudo que é belo é uma alegria pra sempre, antes de morrer, pediu que seu nome não fosse gravado em seu túmulo. Preferiu apenas a frase “Aqui jaz alguém cujo nome foi escrito n’água”. Talvez ele soubesse que a beleza e o sabor de uma vida estão na sua precariedade, na sua fugacidade, na sua inscrição na água.
domingo, 1 de agosto de 2010
SERIA ÚTIL FAZER ANÁLISE?
Uma pergunta que se ouve com freqüência é: para que serve uma análise? A pessoa que se analisou seria, depois desta experiência, mais bem resolvida, mais tranquila, mais animada, mais equilibrada, mais responsável, mais saudável, mais madura, mais bonita, mais sensual, mais inteligente, mais sábia, mais vitoriosa, mais criativa, mais bem amada ou mais feliz? Enfim, com o tratamento analítico, conseguiríamos mudar alguém de uma condição pior para uma melhor?
A possibilidade de transformar a realidade de um determinado ser humano sempre foi o grande desafio da medicina e dos seus derivados do campo da saúde mental. Se pensarmos que a busca pela cura, pelo retorno a uma ideia de normalidade, não deixa de ser uma luta contra um determinado destino (a doença) que se impõe às pessoas, tratar nada mais seria do que possibilitar uma vida melhor para alguém. Esse ideal ganhou tanta força nos dias de hoje que os tratamentos não devem apenas visar a eliminação das moléstias, mas também permitir aos seres humanos um desempenho superior ao daquele considerado normal para a espécie. Novas terapêuticas prometem nos levar a um estado supranatural, além das nossas limitações corporais, como se a nossa condição habitual fosse, ela mesma, patológica. Desse modo, mais do que curar doenças, a medicina e afins talvez sirvam para manter a esperança de uma felicidade plena.
Mesmo sendo a história das tentativas de se alcançar essa promessa um relato de sucessivos fracassos, as ilusões de avanço e evolução promovidas pelo aprendizado tecnológico (como a longevidade de algumas pessoas) sustentam firmemente a expectativa de um futuro melhor. Se não foi dessa vez, estamos conhecendo mais, estamos construindo máquinas de diagnóstico e tratamento mais modernas e eficazes, logo chegaremos lá.
Se, no passado, o homem virtuoso era aquele que seguia os preceitos morais de sua religião, virtuoso, hoje, é o indivíduo que consegue acompanhar a receita de uma vida saudável: não fumar, não beber, não usar drogas ilícitas, fazer sexo seguro, praticar exercícios físicos, não abusar do sal, gordura e açúcar, ingerir quantidades adequadas de cálcio, zinco, vitamina B12, ácido fólico e ômega 3, tomar sol (sem exagero) para produzir vitamina D, passar protetor solar, dormir uma quantidade boa de horas por dia, comer regularmente, fazer check-up em uma freqüência correta para a sua idade e risco genético, manter o equilíbrio emocional e evitar o estresse, buscar a qualidade de vida. Enquanto a religião prometia para aqueles que abrissem mão dos prazeres mundanos o paraíso após a morte, a medicina traz a esperança de uma existência longa e feliz. Faz uma equivalência entre quantidade de anos e felicidade.
Assim, a medicina dá a sua importante contribuição para a ideia corrente de que ser feliz é uma questão de acúmulo: quanto mais dinheiro, quanto mais bens, quanto mais sucesso e reconhecimento, quanto mais amores, quanto mais anos de vida, se é mais feliz. Milionários, celebridades e, quem sabe no futuro, centenários saudáveis sejam os novos modelos de vida.
O problema é que, diante desses ideais, as pessoas, no seu dia-a-dia, se sentem fracassadas. Por mais que se esforcem em seguir as receitas vendidas, se percebem sempre fracas e aquém, presas a vícios ou acasos que lhe impedem de alcançar a felicidade prometida. Aqueles que, por ventura, conseguem ter dinheiro ou fama, não têm a mesma sorte em relação à saúde ou ao bom ambiente familiar. Um milionário pode chegar à conclusão de que se preocupou muito com o sucesso profissional, mas se esqueceu de cuidar do sal na comida. Algo sempre fica faltando, algo sempre escapa. A felicidade parece apenas brilhar nas revistas que tratam de celebridades, de saúde ou ginástica; nas fotografias de alegres casais de artistas da TV ou de perfeitas barrigas de tanquinho de atléticos modelos. Uma satisfação sempre suposta em outra pessoa distante e inalcançável, uma felicidade que se saboreia apenas pela inveja.
Na lógica do mais, a felicidade está naquilo que falta, no que ainda está para se ganhar ou no que se perdeu. Uma equação que resulta sempre em dívida, em uma cobrança, em culpa. Deverá ser assim, deveria ter sido de outro jeito. Para eu ser feliz, minha realidade deveria ser outra. Em resposta a esse clamor, as renovadas promessas de transformação da medicina e companhia. A mudança de um ser humano prisioneiro do acaso infeliz das doenças físicas e comportamentais para um ser que é senhor do seu destino e livre das mazelas da natureza. Embora se utilize das ciências naturais, o projeto dessa medicina é fabricar um ser totalmente ideal, virtual.
Voltando à pergunta inicial sobre a serventia de uma análise, pode-se dizer que, se for para ser mais uma a assegurar a esperança de transformação de alguém pior em um ser melhor; de se ter uma vida mais saudável, mais equilibrada ou mais feliz; não há nenhuma necessidade da psicanálise no mundo. Quem se pauta por essa expectativa faz mais certo em procurar a medicina ou no máximo uma terapia alternativa ou livros de auto-ajuda. Não deve perder seu tempo com analistas.
Para o analista não existe uma vida melhor. Ele não tem uma alternativa melhor para oferecer aos seus pacientes. Não acredita e não trabalha com o deveria ser, mas com aquilo que é, com aquilo que se apresenta. Diante das queixas das pessoas que lhe procuram, do lamento de alguém que se percebe como menos feliz, menos amado, com menos sorte, menos tranqüilo, menos animado ou menos saudável, o analista não responde com a promessa de um cenário de mais conforto, de mais perfeição e felicidade. Ele se mostra totalmente inútil diante da expectativa de uma vida mais completa e satisfatória. Responde sempre: é isto mesmo, você tem razão, não dá para escapar disto, o mal-estar é permanente, não existe um sentido final.
O analista não promete o que não tem para dar. Não é agente de uma ilusão, de uma felicidade plena, de uma completude. Ele sabe e faz uso da impossibilidade de alguém ser totalmente amado, seguro e feliz. Não cura essa dor, mas faz dela uma ferramenta de vida. Não transforma ou muda ninguém. Não diz: você será mais feliz quando for outro. Ao contrário, a opção oferecida pelo analista é: seja você mesmo, pare de querer ser outro, de buscar um ideal de si. Viva do que tem, da sua incompletude.
O analista faz uso real da frase (dita normalmente de forma desacreditada) de que nada; dinheiro, saúde, vida longa, amores ou sucesso; garante a felicidade. Ele pratica essa possibilidade. Mais do que apenas dizer para os seus pacientes, ele vive a sua própria existência a partir do impossível de se escapar da morte. Sabe que as outras pessoas, no fundo, se convencem apenas pelo exemplo e não pelo que se diz ou se proclama.
Para o analista, a divisão entre vida pública e privada não vale. Nas atividades que trabalham com a promessa de um ser humano melhor e mais completo, ao contrário, deve-se sempre se portar a máscara de um profissional sério, responsável e bem resolvido. Deve-se vender uma imagem idealizada para o fraco que lhe procura. Os vícios, contradições, azares e incertezas; mazelas das quais ninguém escapa; devem ser guardados escondidos na chamada vida privada.
O analista não percebe a incompletude como um defeito, como um pecado, como algo que resulta em um ser humano ruim ou limitado. Ele gosta, ele ama a condição humana como ela é, a sua imperfeição sem cura. Não tem a pretensão de melhorar ninguém, mesmo porque não se acha melhor ou pior do que aquele que vive na esperança da satisfação total. Não quer convencer o outro de que este deve fazer o mesmo que ele. Não seduz pela inveja.
Assim como o poeta, o matemático ou o ator (ator, não celebridade!), o analista vive com a sua inutilidade no mundo. Ele pratica esse caminho que a vida lhe trouxe porque não tem outro. Como não transforma ninguém, pode ser somente um exemplo; que não pode ser copiado e que não oferece receita; para outros que, como ele, também são marcados pelo impossível. Para aquele que tem olhos para o ver o possa ver. Ele serve apenas para esse encontro. E não se apresenta para os que o procuram como um mestre, um salvador, mas como algo mais próximo de um simples amigo: alguém que compartilha, mas não tira a dor.
Muitos podem pensar que a análise cria um ser humano conformado, triste e desanimado com as limitações da sua existência. A promessa de felicidade plena talvez tenha servido para animar e orientar a humanidade nos últimos séculos. Como na história de se amarrar uma vara com uma cenoura na frente de um burro para se manter o animal em movimento. Se ele, por acaso, alcançar a cenoura, satisfaz a sua fome e deixa de andar. Mas, se também nunca a alcança, um dia ele pode se cansar e desanimar. Quanto passos faltam para esgotarmos a nossa esperança nunca alcançada de felicidade plena? Será que não precisamos de outra alternativa para seguirmos andando? A psicanálise sabe que os seres humanos não são como os burros. Não há cenoura que satisfaça o nosso apetite, o nosso desejo. Ela tenta fazer dessa impossibilidade aquilo que nos movimenta.
A possibilidade de transformar a realidade de um determinado ser humano sempre foi o grande desafio da medicina e dos seus derivados do campo da saúde mental. Se pensarmos que a busca pela cura, pelo retorno a uma ideia de normalidade, não deixa de ser uma luta contra um determinado destino (a doença) que se impõe às pessoas, tratar nada mais seria do que possibilitar uma vida melhor para alguém. Esse ideal ganhou tanta força nos dias de hoje que os tratamentos não devem apenas visar a eliminação das moléstias, mas também permitir aos seres humanos um desempenho superior ao daquele considerado normal para a espécie. Novas terapêuticas prometem nos levar a um estado supranatural, além das nossas limitações corporais, como se a nossa condição habitual fosse, ela mesma, patológica. Desse modo, mais do que curar doenças, a medicina e afins talvez sirvam para manter a esperança de uma felicidade plena.
Mesmo sendo a história das tentativas de se alcançar essa promessa um relato de sucessivos fracassos, as ilusões de avanço e evolução promovidas pelo aprendizado tecnológico (como a longevidade de algumas pessoas) sustentam firmemente a expectativa de um futuro melhor. Se não foi dessa vez, estamos conhecendo mais, estamos construindo máquinas de diagnóstico e tratamento mais modernas e eficazes, logo chegaremos lá.
Se, no passado, o homem virtuoso era aquele que seguia os preceitos morais de sua religião, virtuoso, hoje, é o indivíduo que consegue acompanhar a receita de uma vida saudável: não fumar, não beber, não usar drogas ilícitas, fazer sexo seguro, praticar exercícios físicos, não abusar do sal, gordura e açúcar, ingerir quantidades adequadas de cálcio, zinco, vitamina B12, ácido fólico e ômega 3, tomar sol (sem exagero) para produzir vitamina D, passar protetor solar, dormir uma quantidade boa de horas por dia, comer regularmente, fazer check-up em uma freqüência correta para a sua idade e risco genético, manter o equilíbrio emocional e evitar o estresse, buscar a qualidade de vida. Enquanto a religião prometia para aqueles que abrissem mão dos prazeres mundanos o paraíso após a morte, a medicina traz a esperança de uma existência longa e feliz. Faz uma equivalência entre quantidade de anos e felicidade.
Assim, a medicina dá a sua importante contribuição para a ideia corrente de que ser feliz é uma questão de acúmulo: quanto mais dinheiro, quanto mais bens, quanto mais sucesso e reconhecimento, quanto mais amores, quanto mais anos de vida, se é mais feliz. Milionários, celebridades e, quem sabe no futuro, centenários saudáveis sejam os novos modelos de vida.
O problema é que, diante desses ideais, as pessoas, no seu dia-a-dia, se sentem fracassadas. Por mais que se esforcem em seguir as receitas vendidas, se percebem sempre fracas e aquém, presas a vícios ou acasos que lhe impedem de alcançar a felicidade prometida. Aqueles que, por ventura, conseguem ter dinheiro ou fama, não têm a mesma sorte em relação à saúde ou ao bom ambiente familiar. Um milionário pode chegar à conclusão de que se preocupou muito com o sucesso profissional, mas se esqueceu de cuidar do sal na comida. Algo sempre fica faltando, algo sempre escapa. A felicidade parece apenas brilhar nas revistas que tratam de celebridades, de saúde ou ginástica; nas fotografias de alegres casais de artistas da TV ou de perfeitas barrigas de tanquinho de atléticos modelos. Uma satisfação sempre suposta em outra pessoa distante e inalcançável, uma felicidade que se saboreia apenas pela inveja.
Na lógica do mais, a felicidade está naquilo que falta, no que ainda está para se ganhar ou no que se perdeu. Uma equação que resulta sempre em dívida, em uma cobrança, em culpa. Deverá ser assim, deveria ter sido de outro jeito. Para eu ser feliz, minha realidade deveria ser outra. Em resposta a esse clamor, as renovadas promessas de transformação da medicina e companhia. A mudança de um ser humano prisioneiro do acaso infeliz das doenças físicas e comportamentais para um ser que é senhor do seu destino e livre das mazelas da natureza. Embora se utilize das ciências naturais, o projeto dessa medicina é fabricar um ser totalmente ideal, virtual.
Voltando à pergunta inicial sobre a serventia de uma análise, pode-se dizer que, se for para ser mais uma a assegurar a esperança de transformação de alguém pior em um ser melhor; de se ter uma vida mais saudável, mais equilibrada ou mais feliz; não há nenhuma necessidade da psicanálise no mundo. Quem se pauta por essa expectativa faz mais certo em procurar a medicina ou no máximo uma terapia alternativa ou livros de auto-ajuda. Não deve perder seu tempo com analistas.
Para o analista não existe uma vida melhor. Ele não tem uma alternativa melhor para oferecer aos seus pacientes. Não acredita e não trabalha com o deveria ser, mas com aquilo que é, com aquilo que se apresenta. Diante das queixas das pessoas que lhe procuram, do lamento de alguém que se percebe como menos feliz, menos amado, com menos sorte, menos tranqüilo, menos animado ou menos saudável, o analista não responde com a promessa de um cenário de mais conforto, de mais perfeição e felicidade. Ele se mostra totalmente inútil diante da expectativa de uma vida mais completa e satisfatória. Responde sempre: é isto mesmo, você tem razão, não dá para escapar disto, o mal-estar é permanente, não existe um sentido final.
O analista não promete o que não tem para dar. Não é agente de uma ilusão, de uma felicidade plena, de uma completude. Ele sabe e faz uso da impossibilidade de alguém ser totalmente amado, seguro e feliz. Não cura essa dor, mas faz dela uma ferramenta de vida. Não transforma ou muda ninguém. Não diz: você será mais feliz quando for outro. Ao contrário, a opção oferecida pelo analista é: seja você mesmo, pare de querer ser outro, de buscar um ideal de si. Viva do que tem, da sua incompletude.
O analista faz uso real da frase (dita normalmente de forma desacreditada) de que nada; dinheiro, saúde, vida longa, amores ou sucesso; garante a felicidade. Ele pratica essa possibilidade. Mais do que apenas dizer para os seus pacientes, ele vive a sua própria existência a partir do impossível de se escapar da morte. Sabe que as outras pessoas, no fundo, se convencem apenas pelo exemplo e não pelo que se diz ou se proclama.
Para o analista, a divisão entre vida pública e privada não vale. Nas atividades que trabalham com a promessa de um ser humano melhor e mais completo, ao contrário, deve-se sempre se portar a máscara de um profissional sério, responsável e bem resolvido. Deve-se vender uma imagem idealizada para o fraco que lhe procura. Os vícios, contradições, azares e incertezas; mazelas das quais ninguém escapa; devem ser guardados escondidos na chamada vida privada.
O analista não percebe a incompletude como um defeito, como um pecado, como algo que resulta em um ser humano ruim ou limitado. Ele gosta, ele ama a condição humana como ela é, a sua imperfeição sem cura. Não tem a pretensão de melhorar ninguém, mesmo porque não se acha melhor ou pior do que aquele que vive na esperança da satisfação total. Não quer convencer o outro de que este deve fazer o mesmo que ele. Não seduz pela inveja.
Assim como o poeta, o matemático ou o ator (ator, não celebridade!), o analista vive com a sua inutilidade no mundo. Ele pratica esse caminho que a vida lhe trouxe porque não tem outro. Como não transforma ninguém, pode ser somente um exemplo; que não pode ser copiado e que não oferece receita; para outros que, como ele, também são marcados pelo impossível. Para aquele que tem olhos para o ver o possa ver. Ele serve apenas para esse encontro. E não se apresenta para os que o procuram como um mestre, um salvador, mas como algo mais próximo de um simples amigo: alguém que compartilha, mas não tira a dor.
Muitos podem pensar que a análise cria um ser humano conformado, triste e desanimado com as limitações da sua existência. A promessa de felicidade plena talvez tenha servido para animar e orientar a humanidade nos últimos séculos. Como na história de se amarrar uma vara com uma cenoura na frente de um burro para se manter o animal em movimento. Se ele, por acaso, alcançar a cenoura, satisfaz a sua fome e deixa de andar. Mas, se também nunca a alcança, um dia ele pode se cansar e desanimar. Quanto passos faltam para esgotarmos a nossa esperança nunca alcançada de felicidade plena? Será que não precisamos de outra alternativa para seguirmos andando? A psicanálise sabe que os seres humanos não são como os burros. Não há cenoura que satisfaça o nosso apetite, o nosso desejo. Ela tenta fazer dessa impossibilidade aquilo que nos movimenta.
segunda-feira, 10 de maio de 2010
FREUD E PLACEBO
Nos últimos meses, tenho acompanhado pela imprensa a discussão sobre a eficácia ou não dos antidepressivos. A polêmica surgiu após a divulgação de novas revisões dos estudos com estes medicamentos que teriam concluído que o benefício proporcionado por eles pouco ou nada difere do encontrado com o uso de placebo (pílula com o mesmo aspecto, mas que não contém as substâncias químicas responsáveis pelo efeito da medicação). Essa semelhança nos resultados seria mais evidente no tratamento dos quadros para os quais os antidepressivos são hoje mais prescritos: as chamadas depressões leves e moderadas. Nas depressões mais graves, a vantagem sobre o placebo seria mais consistente.
Muitos psiquiatras ouvidos pelos meios de comunicação saíram em defesa dos antidepressivos questionando a validade dos critérios estatísticos utilizados nessas novas revisões. Argumentam que, no dia-a-dia, os benefícios do tratamento da depressão com substancias químicas são claros.
Chama a atenção nessa querela o fato de que psiquiatras que, no passado, recorriam à necessidade de evidências estatisticamente comprovadas para defender o uso de antidepressivos, hoje, apelem para critérios por eles mesmos considerados como menos objetivos e científicos, como a impressão clínica.
Entretanto, talvez, o mais curioso nessa história não seja a pouca diferença de efeito entre placebo e antidepressivos, mas a boa reposta terapêutica encontrada com o uso de placebo. Nos estudos, muitos pacientes relataram melhora quando estavam em uso pílulas que não continham medicação. O fato de acreditarem estar sendo tratados foi suficiente para que se sentissem mais animados. Na medicina, esta resposta é chamada de efeito sugestivo.
A capacidade sugestiva está diretamente ligada à crença do paciente e do próprio médico em relação ao tratamento que está sendo proposto. Por esta razão, nas pesquisas, se exige que nem o paciente nem o médico saibam quando se está usando medicação ou placebo.
Quanto maiores a segurança e a convicção do psiquiatra ao prescrever determinada medicação, maior a possibilidade do paciente ter uma boa resposta. Se vacilamos ao indicar um tratamento, é quase certo que encontremos problemas na eficácia ou a queixa de efeitos colaterais indesejados. Do mesmo modo, quanto maior a crença do paciente na sabedoria do profissional que o está tratando, melhores são os resultados. Uma indicação cheia de elogios, o preço alto de uma consulta ou os títulos e cargos do médico em questão, são suficientes para causar efeitos terapêuticos. A fé no médico estimula a fé do paciente e a fé de ambos cria uma realidade.
Outro fator importante para um bom convencimento é o quanto que as convicções que embasam determinado tratamento encontram lugar nas crenças gerais de uma sociedade.
Por exemplo, em algumas tribos primitivas havia a proibição de que o pajé fosse tocado por outro membro do grupo. Existem relatos de viajantes ocidentais contando casos de pessoas de uma tribo que após violarem, por acidente, a norma e tocarem o pajé, desenvolveram um sofrimento físico intenso que as levaram à morte. Hoje, acreditar que alguém possa morrer doente só porque tocou em um pajé nos parece absurdo e improvável.
Embora ainda presentes (vide as famosas cirurgias espíritas), as crenças místicas e religiosas perderam força para as convicções médicas ou científicas. No mundo atual, acreditamos que todos os males do corpo são devidos a alterações físicas possíveis de ser detectadas e corrigidas. Como se fôssemos um grande relógio que em certo momento deixou de funcionar bem porque uma determinada peça saiu do lugar ou se estragou. Basta trocarmos ou consertarmos esta peça para que o relógio volte a funcionar adequadamente. Esse modelo pressupõe que cada doença tem uma causa específica e que existiria uma normalidade, um estado de equilíbrio que foi rompido e que precisa ser recuperado.
Até pouco tempo atrás, essa visão se limitava às chamadas doenças físicas, como as doenças infecciosas, as doenças cardíacas ou os tumores. Nos últimos anos, entretanto, esses conceitos também têm prevalecido no campo dos sofrimentos mentais e mesmo em relação a todo o comportamento humano (as áreas que antes eram consideradas derivadas não do corpo, mas da alma). O modelo do relógio tornou-se hegemônico para definir o ser humano. O sofrimento psíquico pôde, então, ser dividido em diversos tipos distintos e cada um deles estaria relacionado ou seria causado por uma alteração específica em determinada área do cérebro. Na psiquiatria, esse movimento é chamado de psiquiatria biológica ou neuropsiquiatria.
É interessante observar como essa visão do comportamento e do sofrimento humano ganhou aceitação na sociedade. Conceitos como depressão e transtorno bipolar foram incorporados pela população como verdades concretas e inquestionáveis. Os pacientes acreditam piamente que seu mal-estar psíquico se deve a um defeito nos seus níveis de serotonina ou de outra substância recentemente mais comentada, a dopamina. Muitos têm a convicção de que estar deprimido é igual ter carência de vitamina C. Basta repor a serotonina para tudo voltar ao normal.
Nos consultórios, são distribuídas aos pacientes pequenas cartilhas explicando a sua doença mental. Elas são ilustradas com desenhos que representam as regiões do cérebro que estariam alteradas (normalmente a área chamada fenda sináptica, região em que os neurônios se comunicam) e como os medicamentos corrigem estas perturbações. Estes desenhos, talvez, tenham para os seus crentes o mesmo peso de realidade que no passado tiveram a ilustrações que mostravam anjos, santos e Deus no paraíso.
A facilidade de assimilação do modelo biológico na sociedade em que vivemos pode estar relacionada a algumas vantagens evidentes deste conceito para os profissionais de saúde e para os seus pacientes. Ele teria permitido aos psiquiatras finalmente encontrar um modelo objetivo para a sua atividade. Só está faltando serem concretizadas as promessas de marcadores específicos para cada transtorno mental que possam ser avaliados por exames de imagem ou por dosagens sanguíneas, como em outras áreas da medicina. Pelo o que se tem visto nos congressos, é possível que demore um pouco...
Para os pacientes, a ideia de um determinismo biológico aparenta ser uma crença confortável e prática. O sofrimento psíquico não é da responsabilidade de quem o está sentindo. Os pacientes são vítimas de sua biologia, de sua genética. É muito desconfortável se sentir deprimido e ainda por cima se sentir culpado por isto.
Basta procurar um psiquiatra que, como um bom relojoeiro, irá detectar qual parte do cérebro deixou de bem funcionar e dirá ou prescreverá a melhor forma de resolver este defeito. Como, até o momento atual, as pesquisas científicas não conseguiram relacionar cada transtorno mental com uma alteração orgânica específica (não se sabe a causa das doenças mentais), os remédios prescritos permitem somente um controle dos sintomas, sendo muitas vezes necessário o uso contínuo da medicação. Os pacientes, então, se dizem portadores de determinado transtorno, têm a expectativa de que as outras pessoas os reconheçam neste lugar e que nada deles se espere muito até que, quem sabe, um dia, o seu mal possa finalmente ser curado. O seu desajuste no mundo tem uma explicação, não é da sua responsabilidade (na verdade ele é vitima) e, como não existe cura, o paciente tem pelo menos um boa justificativa para se desculpar do seu insucesso na vida.
Já que a responsabilidade pelo sofrimento psíquico não é dos doentes, de quem seria então a culpa? Talvez dos pais que lhes transmitiram a genética defeituosa, dos governantes que não zelaram por um saudável e seguro ambiente, dos médicos e pesquisadores que ainda não encontraram uma forma concreta de cura e até mesmo de Deus que permitiu que tudo isto acontecesse. Além de irresponsável, o portador de transtornos psiquiátricos pode se sentir alguém menos aventurado pelo destino, alguém que o mundo ou a natureza não amou como devia. O paciente sofre, mas tem o conforto de poder ter um culpado pela sua condição e dizer: se não fosse a doença eu seria feliz.
Com todo o respaldo nas crenças sociais do mundo atual, não é de se estranhar que os antidepressivos encontrassem tamanho espaço na tentativa de se aliviar as dores mentais.
Mas caso as recentes revisões estejam corretas e o efeito dos antidepressivos seja equivalente ao de um placebo, talvez pudéssemos tentar entender melhor fenômenos que são comuns na prática psiquiátrica que se apóia na farmacologia.
Intriga o fato de que pacientes com o mesmo tipo de sintomas e mesmo perfil físico possam apresentar resultados completamente diversos quando submetidos ao mesmo tratamento farmacológico. Além disto, é freqüente observar, após alguns meses, pessoas que inicialmente apresentaram uma boa resposta com o uso de determinada medicação piorarem, terem recaídas ou desenvolverem outros tipos de queixas: por exemplo, um paciente que melhorou da depressão passa a queixar-se de compulsão por comida. É normal ter que se aumentar a dose dos remédios, trocar de medicação ou fazer a associação de medicamentos diferentes. Cada vez mais o paciente psiquiátrico se caracteriza por ter diversos diagnósticos e usar várias medicações conjuntamente.
Embora robusto no começo, sabemos que o efeito sugestivo não se mantém com o tempo. É como se o poder da crença no saber de um outro tivesse uma duração limitada. O encanto logo se quebra. No início os pacientes ficam muito gratos, como se submetessem de bom grado ao saber que lhes é apresentado. Depois retornam revelando que este saber não foi suficiente, que continuam a sofrer, que precisam de um saber maior, mais completo. O médico, angustiado diante da piora e da demanda do paciente que ameaça a sua posição e o seu saber, passa, então, a tentar diversas maneiras de tirar o mal-estar que insiste em mostrar a cara: aumenta as doses, acrescenta outro remédio, muda o diagnóstico.
Se, por fim, o paciente se mantém na queixa, é classificado como refratário, podendo até ser encaminhado para intervenções mais extremas, como a psicocirurgia. Outros são diagnosticados como tendo um transtorno de personalidade que impede o bom andamento do tratamento, como o transtorno borderline. No fim, sejam aqueles que necessitam do uso contínuo das medicações, sejam aqueles que respondem pouco a elas, todos aguardam a promessa de uma felicidade que viria quando o saber total do funcionamento do corpo humano nos livrasse das doenças e da morte.
O tratamento baseado na sugestão, na expectativa de um saber que nos curaria, de um outro que sabe de nós e que poderia nos proteger e nos livrar de todos os males, é uma intervenção que se apóia na promessa e na esperança futura. O presente não pode ser desfrutado: só serei feliz quando for plenamente são. Para os religiosos, quando forem para o paraíso; para os crentes da biologia, quando conhecermos todo o corpo e, se isto não ocorrer durante suas vidas, quem sabe, seus filhos e netos possam ter o que eles, por azar, não tiveram.
Mas como seria um tratamento que não se apoiasse em um efeito placebo, na suposição de um outro que sabe de mim? Há mais de 100 anos, um médico ofereceu um outro caminho, uma nova possibilidade.
No final do século 19, Sigmund Freud rompeu com o mais radical e exemplar tratamento sugestivo conhecido: a hipnose. Em vez de conduzir por sugestão hipnótica o que uma paciente deveria lhe contar, Freud, incentivado pela própria moça, se arriscou a deixar que ela lhe dissesse livremente o que lhe vinha à cabeça.
Uma pequena mudança que talvez tenha representado uma revolução: o saber não está no outro, não é prévio, mas se faz à medida que o paciente fala, está sempre em construção e, portanto, permanentemente inacabado.
A nova transferência, o novo amor terapêutico criado por Freud não se dá pela suposição de um saber que está no médico ou em qualquer outra pessoa. O que trata o paciente não é o acúmulo de conhecimento, não são os diplomas, títulos ou cargos, não é a aparência séria nem as roupas sóbrias, não é o consultório moderno nem muito menos o preço alto das consultas ou outro marketing qualquer. O tratamento ocorre apenas pela capacidade do clínico de suportar, diante dos seus pacientes, a impossibilidade de tudo saber, a impossibilidade de um amor que nos complete, a impossibilidade de vencer a morte.
O analista não se angustia por não saber tudo, não se sente devedor ou culpado por isto. Ele não promete a salvação, não oferece saberes, regras ou receitas de bem viver, mas mostra, com o seu exemplo, que se pode ser feliz na incompletude. Um exemplo que não pode ser copiado, mas que revela que é possível, para cada um, ao seu jeito, inventar uma felicidade sem um fim.
Mais que pelos seus conceitos e teorias, pela sua aparência que muitos percebem como velha, Freud permanece atual pelo seu exemplo. Ele soube manter até o fim da vida uma falta de contentamento permanente diante da respostas que dava para o mal-estar que insistia em seus pacientes. Não procurou soluções e modelos completos, mas seguiu adiante inventando e inventando. Não anulou seu compromisso com a verdade mesmo tendo de enfrentar ameaças à boa imagem que desfrutava na sociedade médica de seu tempo.
Freud não recuou quando a verdade lhe pediu a afirmação da sexualidade das crianças e de que, além da busca pelo prazer e pela sobrevivência, habita nos humanos uma insistente insatisfação e um instinto de morte.
Com o uso apenas de antidepressivos, encontramos pessoas que se tornam portadores de transtornos mentais à espera de um saber total e impossível que possa curar o seu mal-estar (poderíamos lembrar que relógio é uma invenção humana, sem correspondência na natureza. Não deveríamos confiar que nossos delírios sejam o mundo).
Com o tratamento inventado por Freud, podemos nos deparar com pessoas que se responsabilizam por criar sua felicidade, por fazer valer suas existências na precariedade real do presente e não na espera de um futuro sempre idealizado.
Como no exemplo de Freud, os analisados podem ter a oportunidade viver pela escolha por aquilo que é verdadeiro e não pelo dever com aquilo que nos engana, com as ilusões, com a mentira, com os placebos.
Muitos psiquiatras ouvidos pelos meios de comunicação saíram em defesa dos antidepressivos questionando a validade dos critérios estatísticos utilizados nessas novas revisões. Argumentam que, no dia-a-dia, os benefícios do tratamento da depressão com substancias químicas são claros.
Chama a atenção nessa querela o fato de que psiquiatras que, no passado, recorriam à necessidade de evidências estatisticamente comprovadas para defender o uso de antidepressivos, hoje, apelem para critérios por eles mesmos considerados como menos objetivos e científicos, como a impressão clínica.
Entretanto, talvez, o mais curioso nessa história não seja a pouca diferença de efeito entre placebo e antidepressivos, mas a boa reposta terapêutica encontrada com o uso de placebo. Nos estudos, muitos pacientes relataram melhora quando estavam em uso pílulas que não continham medicação. O fato de acreditarem estar sendo tratados foi suficiente para que se sentissem mais animados. Na medicina, esta resposta é chamada de efeito sugestivo.
A capacidade sugestiva está diretamente ligada à crença do paciente e do próprio médico em relação ao tratamento que está sendo proposto. Por esta razão, nas pesquisas, se exige que nem o paciente nem o médico saibam quando se está usando medicação ou placebo.
Quanto maiores a segurança e a convicção do psiquiatra ao prescrever determinada medicação, maior a possibilidade do paciente ter uma boa resposta. Se vacilamos ao indicar um tratamento, é quase certo que encontremos problemas na eficácia ou a queixa de efeitos colaterais indesejados. Do mesmo modo, quanto maior a crença do paciente na sabedoria do profissional que o está tratando, melhores são os resultados. Uma indicação cheia de elogios, o preço alto de uma consulta ou os títulos e cargos do médico em questão, são suficientes para causar efeitos terapêuticos. A fé no médico estimula a fé do paciente e a fé de ambos cria uma realidade.
Outro fator importante para um bom convencimento é o quanto que as convicções que embasam determinado tratamento encontram lugar nas crenças gerais de uma sociedade.
Por exemplo, em algumas tribos primitivas havia a proibição de que o pajé fosse tocado por outro membro do grupo. Existem relatos de viajantes ocidentais contando casos de pessoas de uma tribo que após violarem, por acidente, a norma e tocarem o pajé, desenvolveram um sofrimento físico intenso que as levaram à morte. Hoje, acreditar que alguém possa morrer doente só porque tocou em um pajé nos parece absurdo e improvável.
Embora ainda presentes (vide as famosas cirurgias espíritas), as crenças místicas e religiosas perderam força para as convicções médicas ou científicas. No mundo atual, acreditamos que todos os males do corpo são devidos a alterações físicas possíveis de ser detectadas e corrigidas. Como se fôssemos um grande relógio que em certo momento deixou de funcionar bem porque uma determinada peça saiu do lugar ou se estragou. Basta trocarmos ou consertarmos esta peça para que o relógio volte a funcionar adequadamente. Esse modelo pressupõe que cada doença tem uma causa específica e que existiria uma normalidade, um estado de equilíbrio que foi rompido e que precisa ser recuperado.
Até pouco tempo atrás, essa visão se limitava às chamadas doenças físicas, como as doenças infecciosas, as doenças cardíacas ou os tumores. Nos últimos anos, entretanto, esses conceitos também têm prevalecido no campo dos sofrimentos mentais e mesmo em relação a todo o comportamento humano (as áreas que antes eram consideradas derivadas não do corpo, mas da alma). O modelo do relógio tornou-se hegemônico para definir o ser humano. O sofrimento psíquico pôde, então, ser dividido em diversos tipos distintos e cada um deles estaria relacionado ou seria causado por uma alteração específica em determinada área do cérebro. Na psiquiatria, esse movimento é chamado de psiquiatria biológica ou neuropsiquiatria.
É interessante observar como essa visão do comportamento e do sofrimento humano ganhou aceitação na sociedade. Conceitos como depressão e transtorno bipolar foram incorporados pela população como verdades concretas e inquestionáveis. Os pacientes acreditam piamente que seu mal-estar psíquico se deve a um defeito nos seus níveis de serotonina ou de outra substância recentemente mais comentada, a dopamina. Muitos têm a convicção de que estar deprimido é igual ter carência de vitamina C. Basta repor a serotonina para tudo voltar ao normal.
Nos consultórios, são distribuídas aos pacientes pequenas cartilhas explicando a sua doença mental. Elas são ilustradas com desenhos que representam as regiões do cérebro que estariam alteradas (normalmente a área chamada fenda sináptica, região em que os neurônios se comunicam) e como os medicamentos corrigem estas perturbações. Estes desenhos, talvez, tenham para os seus crentes o mesmo peso de realidade que no passado tiveram a ilustrações que mostravam anjos, santos e Deus no paraíso.
A facilidade de assimilação do modelo biológico na sociedade em que vivemos pode estar relacionada a algumas vantagens evidentes deste conceito para os profissionais de saúde e para os seus pacientes. Ele teria permitido aos psiquiatras finalmente encontrar um modelo objetivo para a sua atividade. Só está faltando serem concretizadas as promessas de marcadores específicos para cada transtorno mental que possam ser avaliados por exames de imagem ou por dosagens sanguíneas, como em outras áreas da medicina. Pelo o que se tem visto nos congressos, é possível que demore um pouco...
Para os pacientes, a ideia de um determinismo biológico aparenta ser uma crença confortável e prática. O sofrimento psíquico não é da responsabilidade de quem o está sentindo. Os pacientes são vítimas de sua biologia, de sua genética. É muito desconfortável se sentir deprimido e ainda por cima se sentir culpado por isto.
Basta procurar um psiquiatra que, como um bom relojoeiro, irá detectar qual parte do cérebro deixou de bem funcionar e dirá ou prescreverá a melhor forma de resolver este defeito. Como, até o momento atual, as pesquisas científicas não conseguiram relacionar cada transtorno mental com uma alteração orgânica específica (não se sabe a causa das doenças mentais), os remédios prescritos permitem somente um controle dos sintomas, sendo muitas vezes necessário o uso contínuo da medicação. Os pacientes, então, se dizem portadores de determinado transtorno, têm a expectativa de que as outras pessoas os reconheçam neste lugar e que nada deles se espere muito até que, quem sabe, um dia, o seu mal possa finalmente ser curado. O seu desajuste no mundo tem uma explicação, não é da sua responsabilidade (na verdade ele é vitima) e, como não existe cura, o paciente tem pelo menos um boa justificativa para se desculpar do seu insucesso na vida.
Já que a responsabilidade pelo sofrimento psíquico não é dos doentes, de quem seria então a culpa? Talvez dos pais que lhes transmitiram a genética defeituosa, dos governantes que não zelaram por um saudável e seguro ambiente, dos médicos e pesquisadores que ainda não encontraram uma forma concreta de cura e até mesmo de Deus que permitiu que tudo isto acontecesse. Além de irresponsável, o portador de transtornos psiquiátricos pode se sentir alguém menos aventurado pelo destino, alguém que o mundo ou a natureza não amou como devia. O paciente sofre, mas tem o conforto de poder ter um culpado pela sua condição e dizer: se não fosse a doença eu seria feliz.
Com todo o respaldo nas crenças sociais do mundo atual, não é de se estranhar que os antidepressivos encontrassem tamanho espaço na tentativa de se aliviar as dores mentais.
Mas caso as recentes revisões estejam corretas e o efeito dos antidepressivos seja equivalente ao de um placebo, talvez pudéssemos tentar entender melhor fenômenos que são comuns na prática psiquiátrica que se apóia na farmacologia.
Intriga o fato de que pacientes com o mesmo tipo de sintomas e mesmo perfil físico possam apresentar resultados completamente diversos quando submetidos ao mesmo tratamento farmacológico. Além disto, é freqüente observar, após alguns meses, pessoas que inicialmente apresentaram uma boa resposta com o uso de determinada medicação piorarem, terem recaídas ou desenvolverem outros tipos de queixas: por exemplo, um paciente que melhorou da depressão passa a queixar-se de compulsão por comida. É normal ter que se aumentar a dose dos remédios, trocar de medicação ou fazer a associação de medicamentos diferentes. Cada vez mais o paciente psiquiátrico se caracteriza por ter diversos diagnósticos e usar várias medicações conjuntamente.
Embora robusto no começo, sabemos que o efeito sugestivo não se mantém com o tempo. É como se o poder da crença no saber de um outro tivesse uma duração limitada. O encanto logo se quebra. No início os pacientes ficam muito gratos, como se submetessem de bom grado ao saber que lhes é apresentado. Depois retornam revelando que este saber não foi suficiente, que continuam a sofrer, que precisam de um saber maior, mais completo. O médico, angustiado diante da piora e da demanda do paciente que ameaça a sua posição e o seu saber, passa, então, a tentar diversas maneiras de tirar o mal-estar que insiste em mostrar a cara: aumenta as doses, acrescenta outro remédio, muda o diagnóstico.
Se, por fim, o paciente se mantém na queixa, é classificado como refratário, podendo até ser encaminhado para intervenções mais extremas, como a psicocirurgia. Outros são diagnosticados como tendo um transtorno de personalidade que impede o bom andamento do tratamento, como o transtorno borderline. No fim, sejam aqueles que necessitam do uso contínuo das medicações, sejam aqueles que respondem pouco a elas, todos aguardam a promessa de uma felicidade que viria quando o saber total do funcionamento do corpo humano nos livrasse das doenças e da morte.
O tratamento baseado na sugestão, na expectativa de um saber que nos curaria, de um outro que sabe de nós e que poderia nos proteger e nos livrar de todos os males, é uma intervenção que se apóia na promessa e na esperança futura. O presente não pode ser desfrutado: só serei feliz quando for plenamente são. Para os religiosos, quando forem para o paraíso; para os crentes da biologia, quando conhecermos todo o corpo e, se isto não ocorrer durante suas vidas, quem sabe, seus filhos e netos possam ter o que eles, por azar, não tiveram.
Mas como seria um tratamento que não se apoiasse em um efeito placebo, na suposição de um outro que sabe de mim? Há mais de 100 anos, um médico ofereceu um outro caminho, uma nova possibilidade.
No final do século 19, Sigmund Freud rompeu com o mais radical e exemplar tratamento sugestivo conhecido: a hipnose. Em vez de conduzir por sugestão hipnótica o que uma paciente deveria lhe contar, Freud, incentivado pela própria moça, se arriscou a deixar que ela lhe dissesse livremente o que lhe vinha à cabeça.
Uma pequena mudança que talvez tenha representado uma revolução: o saber não está no outro, não é prévio, mas se faz à medida que o paciente fala, está sempre em construção e, portanto, permanentemente inacabado.
A nova transferência, o novo amor terapêutico criado por Freud não se dá pela suposição de um saber que está no médico ou em qualquer outra pessoa. O que trata o paciente não é o acúmulo de conhecimento, não são os diplomas, títulos ou cargos, não é a aparência séria nem as roupas sóbrias, não é o consultório moderno nem muito menos o preço alto das consultas ou outro marketing qualquer. O tratamento ocorre apenas pela capacidade do clínico de suportar, diante dos seus pacientes, a impossibilidade de tudo saber, a impossibilidade de um amor que nos complete, a impossibilidade de vencer a morte.
O analista não se angustia por não saber tudo, não se sente devedor ou culpado por isto. Ele não promete a salvação, não oferece saberes, regras ou receitas de bem viver, mas mostra, com o seu exemplo, que se pode ser feliz na incompletude. Um exemplo que não pode ser copiado, mas que revela que é possível, para cada um, ao seu jeito, inventar uma felicidade sem um fim.
Mais que pelos seus conceitos e teorias, pela sua aparência que muitos percebem como velha, Freud permanece atual pelo seu exemplo. Ele soube manter até o fim da vida uma falta de contentamento permanente diante da respostas que dava para o mal-estar que insistia em seus pacientes. Não procurou soluções e modelos completos, mas seguiu adiante inventando e inventando. Não anulou seu compromisso com a verdade mesmo tendo de enfrentar ameaças à boa imagem que desfrutava na sociedade médica de seu tempo.
Freud não recuou quando a verdade lhe pediu a afirmação da sexualidade das crianças e de que, além da busca pelo prazer e pela sobrevivência, habita nos humanos uma insistente insatisfação e um instinto de morte.
Com o uso apenas de antidepressivos, encontramos pessoas que se tornam portadores de transtornos mentais à espera de um saber total e impossível que possa curar o seu mal-estar (poderíamos lembrar que relógio é uma invenção humana, sem correspondência na natureza. Não deveríamos confiar que nossos delírios sejam o mundo).
Com o tratamento inventado por Freud, podemos nos deparar com pessoas que se responsabilizam por criar sua felicidade, por fazer valer suas existências na precariedade real do presente e não na espera de um futuro sempre idealizado.
Como no exemplo de Freud, os analisados podem ter a oportunidade viver pela escolha por aquilo que é verdadeiro e não pelo dever com aquilo que nos engana, com as ilusões, com a mentira, com os placebos.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
AVATAR
No último texto que coloquei no blog, falei de como fatos ocorridos no passado me causavam a impressão de serem mais novos do que acontecimentos presentes que aparentam modernidade. Pois fui ver Avatar e saí do cinema com esta sensação reforçada.
O filme de James Cameron é vendido como o mais inovador trabalho cinematográfico até hoje realizado devido à tecnologia avançada empregada na criação de efeitos especiais em terceira dimensão. Mas fiquei com a sensação de que é uma embalagem nova (ou talvez apenas diferente) de algo bastante velho e batido. É como pegar uma tradicional bala de coco e, em vez de embalá-la em papel de seda, colocá-la em uma caixa metálica que se abre automaticamente ao comando da voz do comprador. No fim das contas, vai se estar consumindo a mesma bala, embora com a ilusão de novidade.
Em 3D ou não, o que é velho em Avatar é o que o filme nos conta, o que nos mostra: o ser humano é mau, mas poderia ser bom; ou melhor; o ser humano é imperfeito, mas poderia ser perfeito.
Para nos dizer esta antiga lição moral, o filme lança mão de uma história na qual humanos gananciosos e destrutivos invadem um planeta em que reina uma perfeita e harmoniosa interação entre os seres falantes de lá e o seu meio ambiente.
No planeta Pandora, os habitantes possuem uma cabeleira cumprida que, assim como um cabo USB, lhes permite uma conexão direta com outros seres vivos, com a natureza inanimada e também com a Deusa local. Lá não existem carecas, gordos, alcoólatras, chatos, mancos ou coxos. Não há desajustados sociais e nem losers. Os chefes e a Deusa são justos e usam o seu poder apenas para apoiar e proteger os seus chefiados e discípulos. A natureza é espetacular, os vegetais e animais são grandiosos e exuberantes. As paisagens são fantásticas, existem até montanhas que flutuam no ar. Não há crimes ou violência. Quando um animal precisa ser morto para servir de alimento para os nativos, ele recebe; na fala de uma personagem local; uma morte limpa. Talvez não se possa nem mesmo se falar em morte, uma vez que o bicho em questão deixa o seu corpo ajudar os outros seres do planeta enquanto o seu espírito vai encontrar a Deusa. E, o mais importante: em Pandora, os casais, quando se apaixonam, é pra valer. Eles fazem juras fiéis de amor, um passa a ser o complemento eterno do outro.
Vai indo tudo muito bem, estão todos muito felizes, até que aparece o vilão de sempre: o ser humano, este estraga prazeres, esta praga do universo. Os humanos precisam ser mandados de volta para casa para que volte a reinar a paz e a felicidade em Pandora.
Mas qual será o efeito dessa lição de Avatar? Será que as multidões que têm lotado os cinemas vão embora para casa modificados em alguma coisa? Poderá o filme ajudar a mudar a nossa relação com o planeta? Será que finalmente uma reunião, como a de Copenhague, vai dar resultados efetivos? Será que as pessoas vão abrir mão de achar que a felicidade está no que se pode ter ou consumir, no sucesso ou na fama?
Desconfio que Avatar não vai transformar nada disto. Pelo contrário, na sua desgastada moralidade, pode apenas ajudar a cristalizar a inércia. O espectador sai do cinema do mesmo jeito que entrou. O filme apenas confirma suas crenças anteriores, seus preconceitos: o mundo seria melhor e eu mais feliz se não fossem os outros para atrapalhar. No fim, a sua espetacular tecnologia vai servir apenas para entreter a audiência.
Corre o risco de Avatar ser lembrado somente como o filme de maior arrecadação da história do cinema. É engraçado que uma obra que quer combater a ambição destrutiva humana, dê um exemplo de que sucesso é igual a ganhar mais. Exemplos valem mais do que belos discursos. Como se pode, deste modo, querer que o espectador abra mão do seu desejo de enriquecer e consumir? É como se James Cameron dissesse: eu posso, mas você não.
Os filmes ditos de entretenimento não exigem que a audiência pense e se questione. São trabalhos que já portam uma concordância prévia e apresentam soluções fáceis. Assim, deixam de trazer à tona as questões básicas e óbvias: por que o ser humano destrói a natureza? Por que o ser humano é ganancioso e consumista? Não seria porque acreditamos que tendo coisas seremos mais amados e felizes? Não seria este o sentido que damos às nossas vidas hoje, nosso ideal de perfeição e completude?
E, como todo ideal de felicidade, devemos mantê-lo sempre distante para que possamos acreditar nas suas promessas. Então, decretamos que não podemos consumir porque, assim, estaremos destruindo a natureza. Devemos castrar o nosso desejo perverso e destrutivo. Querer ser rico é um pecado, um ato vil contra o planeta. Na nova religião da harmonia ecológica, o mandamento moral maior é não desejar os bens do próximo. Cameron é o profeta e Avatar o seu catecismo ilustrado.
Pandora é um modelo de paraíso que deveríamos copiar para sermos felizes. Devemos abandonar a nossa ambição e nos contentarmos em viver como nativos idealizados da Amazônia ou da África. Tudo que a humanidade construiu além disto é mau e deve ser abandonado.
Mas, como todo paraíso, é uma promessa que nunca poderemos alcançar. Por mais que nos esforcemos, jamais conseguiremos ser plenos e bem resolvidos como os habitantes de Pandora. Podemos vender nossos bens materiais, mudar para a floresta e andar só de tanga que continuaremos infelizes. A natureza, em nosso planeta, ao contrário da de Pandora, não nos oferece nenhum conforto, nenhuma segurança, nenhuma proteção para que possamos bem viver. Ela está sempre nos surpreendendo, sempre nos desafiando, sempre nos incomodando, sempre nos demandando invenção. E foi isto que fizemos ao longo dos séculos. Mesmo que as nossas respostas sejam precárias, parciais, elas nos permitiram sobreviver todos esses anos em meio a um ambiente completamente desconhecido. Precisamos seguir em frente, mudando, inventando novas respostas e é isto que Avatar não nos oferece.
Diante da demanda de alcançarmos o nirvana impossível de Pandora, vamos apenas nos sentir frustrados, deprimidos, menores, ruins. O destino de todo aquele que quer ser perfeito é se sentir um lixo. Ao assistirmos a Avatar é esta a conclusão a que chegamos: o ser humano, por não ser perfeito, é uma porcaria. Podemos, no fim, querer fazer como o personagem principal que achou melhor trocar a sua imperfeição humana pelo corpo sem defeitos dos nativos de Pandora. Quem vê o filme corre o risco de ter o mesmo desejo e querer ser o seu avatar, ser seu outro ideal, perfeito.
Como não podemos fazer como o personagem do filme, não temos uma Pandora à mão, talvez fiquemos apenas deprimidos ou, quem sabe, em uma decisão extrema, escolhamos nos matar. Anular-se para sustentar um ideal de perfeição é uma escolha que muitos podem preferir fazer. Mas há outra: não interpretar a imperfeição humana como um defeito, como algo que diz que somos ruins, fracos. Diante de ideais inalcançáveis, continuaremos produzindo perdedores, deprimidos, bandidos, corruptos e destruidores da natureza.
Mas a imperfeição, a incompletude, pode ser vista como aquilo que nos faz humanos, aquilo que nos faz seres singulares no universo. Por sermos permanentemente incompletos é que estamos convidados à permanente invenção do mundo. Por isto somos seres amorosos: por ter o impulso criativo de fazer existir o que não existe. Só o ser humano inventa peixes, neurônios, pedras e nuvens. No mundo além do contado pelas palavras humanas, nada disto existe. Só nós criamos lobisomens, Deuses, santos e heróis. E por que não amarmos esta condição?
Em vez de pessoas que se acham e se comportam como uma porcaria, em vez de vilões destrutivos, podemos ter humanos que enganam o desconhecido e a morte inventando beleza. Com esses olhos, sabendo que estamos apenas criando e não construindo projetos seguros de verdade, podemos até perceber Avatar além de uma caduca lição de moral. Se sabemos que Pandora nunca existirá, que é apenas uma criação como todas as outras, um mero delírio, em vez de raiva e indignação talvez pudéssemos dizer: que loucura bonita é esta a humana. Os nativos de Pandora, em sua chata harmonia ecológica, jamais conseguiriam produzir um filme cheio de efeitos fantásticos como Avatar. Só humanos imperfeitos podem. Tudo aquilo que o filme procura condenar é justamente o que permitiu a sua realização.
O filme de James Cameron é vendido como o mais inovador trabalho cinematográfico até hoje realizado devido à tecnologia avançada empregada na criação de efeitos especiais em terceira dimensão. Mas fiquei com a sensação de que é uma embalagem nova (ou talvez apenas diferente) de algo bastante velho e batido. É como pegar uma tradicional bala de coco e, em vez de embalá-la em papel de seda, colocá-la em uma caixa metálica que se abre automaticamente ao comando da voz do comprador. No fim das contas, vai se estar consumindo a mesma bala, embora com a ilusão de novidade.
Em 3D ou não, o que é velho em Avatar é o que o filme nos conta, o que nos mostra: o ser humano é mau, mas poderia ser bom; ou melhor; o ser humano é imperfeito, mas poderia ser perfeito.
Para nos dizer esta antiga lição moral, o filme lança mão de uma história na qual humanos gananciosos e destrutivos invadem um planeta em que reina uma perfeita e harmoniosa interação entre os seres falantes de lá e o seu meio ambiente.
No planeta Pandora, os habitantes possuem uma cabeleira cumprida que, assim como um cabo USB, lhes permite uma conexão direta com outros seres vivos, com a natureza inanimada e também com a Deusa local. Lá não existem carecas, gordos, alcoólatras, chatos, mancos ou coxos. Não há desajustados sociais e nem losers. Os chefes e a Deusa são justos e usam o seu poder apenas para apoiar e proteger os seus chefiados e discípulos. A natureza é espetacular, os vegetais e animais são grandiosos e exuberantes. As paisagens são fantásticas, existem até montanhas que flutuam no ar. Não há crimes ou violência. Quando um animal precisa ser morto para servir de alimento para os nativos, ele recebe; na fala de uma personagem local; uma morte limpa. Talvez não se possa nem mesmo se falar em morte, uma vez que o bicho em questão deixa o seu corpo ajudar os outros seres do planeta enquanto o seu espírito vai encontrar a Deusa. E, o mais importante: em Pandora, os casais, quando se apaixonam, é pra valer. Eles fazem juras fiéis de amor, um passa a ser o complemento eterno do outro.
Vai indo tudo muito bem, estão todos muito felizes, até que aparece o vilão de sempre: o ser humano, este estraga prazeres, esta praga do universo. Os humanos precisam ser mandados de volta para casa para que volte a reinar a paz e a felicidade em Pandora.
Mas qual será o efeito dessa lição de Avatar? Será que as multidões que têm lotado os cinemas vão embora para casa modificados em alguma coisa? Poderá o filme ajudar a mudar a nossa relação com o planeta? Será que finalmente uma reunião, como a de Copenhague, vai dar resultados efetivos? Será que as pessoas vão abrir mão de achar que a felicidade está no que se pode ter ou consumir, no sucesso ou na fama?
Desconfio que Avatar não vai transformar nada disto. Pelo contrário, na sua desgastada moralidade, pode apenas ajudar a cristalizar a inércia. O espectador sai do cinema do mesmo jeito que entrou. O filme apenas confirma suas crenças anteriores, seus preconceitos: o mundo seria melhor e eu mais feliz se não fossem os outros para atrapalhar. No fim, a sua espetacular tecnologia vai servir apenas para entreter a audiência.
Corre o risco de Avatar ser lembrado somente como o filme de maior arrecadação da história do cinema. É engraçado que uma obra que quer combater a ambição destrutiva humana, dê um exemplo de que sucesso é igual a ganhar mais. Exemplos valem mais do que belos discursos. Como se pode, deste modo, querer que o espectador abra mão do seu desejo de enriquecer e consumir? É como se James Cameron dissesse: eu posso, mas você não.
Os filmes ditos de entretenimento não exigem que a audiência pense e se questione. São trabalhos que já portam uma concordância prévia e apresentam soluções fáceis. Assim, deixam de trazer à tona as questões básicas e óbvias: por que o ser humano destrói a natureza? Por que o ser humano é ganancioso e consumista? Não seria porque acreditamos que tendo coisas seremos mais amados e felizes? Não seria este o sentido que damos às nossas vidas hoje, nosso ideal de perfeição e completude?
E, como todo ideal de felicidade, devemos mantê-lo sempre distante para que possamos acreditar nas suas promessas. Então, decretamos que não podemos consumir porque, assim, estaremos destruindo a natureza. Devemos castrar o nosso desejo perverso e destrutivo. Querer ser rico é um pecado, um ato vil contra o planeta. Na nova religião da harmonia ecológica, o mandamento moral maior é não desejar os bens do próximo. Cameron é o profeta e Avatar o seu catecismo ilustrado.
Pandora é um modelo de paraíso que deveríamos copiar para sermos felizes. Devemos abandonar a nossa ambição e nos contentarmos em viver como nativos idealizados da Amazônia ou da África. Tudo que a humanidade construiu além disto é mau e deve ser abandonado.
Mas, como todo paraíso, é uma promessa que nunca poderemos alcançar. Por mais que nos esforcemos, jamais conseguiremos ser plenos e bem resolvidos como os habitantes de Pandora. Podemos vender nossos bens materiais, mudar para a floresta e andar só de tanga que continuaremos infelizes. A natureza, em nosso planeta, ao contrário da de Pandora, não nos oferece nenhum conforto, nenhuma segurança, nenhuma proteção para que possamos bem viver. Ela está sempre nos surpreendendo, sempre nos desafiando, sempre nos incomodando, sempre nos demandando invenção. E foi isto que fizemos ao longo dos séculos. Mesmo que as nossas respostas sejam precárias, parciais, elas nos permitiram sobreviver todos esses anos em meio a um ambiente completamente desconhecido. Precisamos seguir em frente, mudando, inventando novas respostas e é isto que Avatar não nos oferece.
Diante da demanda de alcançarmos o nirvana impossível de Pandora, vamos apenas nos sentir frustrados, deprimidos, menores, ruins. O destino de todo aquele que quer ser perfeito é se sentir um lixo. Ao assistirmos a Avatar é esta a conclusão a que chegamos: o ser humano, por não ser perfeito, é uma porcaria. Podemos, no fim, querer fazer como o personagem principal que achou melhor trocar a sua imperfeição humana pelo corpo sem defeitos dos nativos de Pandora. Quem vê o filme corre o risco de ter o mesmo desejo e querer ser o seu avatar, ser seu outro ideal, perfeito.
Como não podemos fazer como o personagem do filme, não temos uma Pandora à mão, talvez fiquemos apenas deprimidos ou, quem sabe, em uma decisão extrema, escolhamos nos matar. Anular-se para sustentar um ideal de perfeição é uma escolha que muitos podem preferir fazer. Mas há outra: não interpretar a imperfeição humana como um defeito, como algo que diz que somos ruins, fracos. Diante de ideais inalcançáveis, continuaremos produzindo perdedores, deprimidos, bandidos, corruptos e destruidores da natureza.
Mas a imperfeição, a incompletude, pode ser vista como aquilo que nos faz humanos, aquilo que nos faz seres singulares no universo. Por sermos permanentemente incompletos é que estamos convidados à permanente invenção do mundo. Por isto somos seres amorosos: por ter o impulso criativo de fazer existir o que não existe. Só o ser humano inventa peixes, neurônios, pedras e nuvens. No mundo além do contado pelas palavras humanas, nada disto existe. Só nós criamos lobisomens, Deuses, santos e heróis. E por que não amarmos esta condição?
Em vez de pessoas que se acham e se comportam como uma porcaria, em vez de vilões destrutivos, podemos ter humanos que enganam o desconhecido e a morte inventando beleza. Com esses olhos, sabendo que estamos apenas criando e não construindo projetos seguros de verdade, podemos até perceber Avatar além de uma caduca lição de moral. Se sabemos que Pandora nunca existirá, que é apenas uma criação como todas as outras, um mero delírio, em vez de raiva e indignação talvez pudéssemos dizer: que loucura bonita é esta a humana. Os nativos de Pandora, em sua chata harmonia ecológica, jamais conseguiriam produzir um filme cheio de efeitos fantásticos como Avatar. Só humanos imperfeitos podem. Tudo aquilo que o filme procura condenar é justamente o que permitiu a sua realização.
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
ACONTECEU EM WOODSTOCK
Ao assistir ao novo filme de Ang Lee, Aconteceu em Woodstock, fui tomado por um pensamento esquisito: no passado, o mundo era mais moderno. Talvez não o mundo todo, mas, especificamente, alguns acontecimentos como o Festival de Woodstock. Esta mesma percepção me veio recentemente ao ver, no YouTube, entrevistas com Elis Regina e Nelson Rodrigues (todas realizadas em plena ditadura militar) e, em DVD, o longa de John Huston, Freud Além da Alma, lançado na década de 60 do último século.
Fiquei me questionando se não seria saudosismo meu, uma crença muito freqüente, principalmente em pessoas mais velhas, de que o mundo era mais feliz no passado. Mas o meu sentimento não era de saudade e sim de estranhamento. Uma sensação um pouco confusa de que o passado era o futuro, um tempo que ainda não havia chegado. É como se hoje vivêssemos em um momento que, apesar de ser posterior temporalmente, fosse pré-Woodstock, pré-Nelson Rodrigues ou pré-Freud.
O filme de Ang Lee não me pareceu ser uma boa recordação de um acontecimento que ficou no passado, mas sobre algo que permanece novo.
O estranhamento de que algo que já aconteceu possa ser mais moderno do que o presente em que vivemos vem do fato de que a aparência nos mostra o contrário. Percebemos nosso mundo atual bem mais avançado que os anos 60 e 70 do século anterior. Nossos carros, nossos edifícios, nossos recursos médicos, nossos aparelhos de telefone, nossos cinemas 3D, nossas novas formas de comunicação, enfim, todas as tecnologias avançadas de que dispomos parecem afirmar a modernidade do nosso tempo.
E não é só em termos tecnológicos que temos a impressão de viver em uma era mais madura, mas, também, ideologicamente. As crenças e ilusões de Woodstock teriam se mostrado velhas com o tempo. Hoje, a possibilidade de um mundo livre de guerras, sem governos autoritários e em que não haja divisões hierárquicas entre as pessoas, soaria como uma bobagem infantil. Os seres humanos seriam por essência ruins, precisaríamos ser vigiados e controlados para não nos destruirmos. Esta seria uma verdade definitiva, imutável.
Mas Ang Lee pode ter enxergado um Woodstock além das aparências tecnológicas ou ideológicas. Um evento que seguiria moderno. Uma modernidade que talvez esteja além das formas, além do tempo, impossível de sofrer desgaste pelo passar dos anos. Não um modelo ou uma receita de como deve ser o mundo, mas um exemplo de que se pode transformá-lo. Que é possível que algo de novo surja no horizonte de nossas vidas. Que o valor está nesta possibilidade de mudança e não no que nos transformaremos, no fim em si. Só existe um fim: a morte, a não existência. Para seguirmos vivos, existindo, é necessária a incompletude permanente. E ela demanda a possibilidade de nos transformarmos, de podermos sair de nossos confortos imaginários e seguir adiante enfrentando o desconhecido infinito do universo.
Deste modo, o novo é aquilo que não se inscreve no tempo e, portanto, pode estar no passado, no presente ou no futuro. O moderno não é usar uma roupa, um cabelo ou um estilo assim ou assado. As experiências artísticas de vanguarda do último século que romperam com todos os padrões e o próprio capitalismo que transforma todas as aparências em mercadorias (vide o que foi feito de Che Guevara) esgotaram todas as possibilidades de que o novo esteja na imagem de alguma coisa. As aparências envelhecem.
Como é impossível alcançarmos um mundo perfeito, a demanda de que uma transformação, ou uma revolução, só tem valor se nos conduzir ao paraíso é uma exigência que tem por objetivo apenas justificar o imobilismo, a crença no não tem jeito de mudar. Se esperamos o impossível, ficamos paralisados.
O trabalho de Ang Lee não desqualifica Woodstock por não ter sido um experiência perfeita. Não diz que o festival foi em vão, que foi uma bobagem que envelheceu ou caducou. Pelo contrário, faz da imperfeição uma delicada comédia e, assim, presta uma leve e elegante homenagem a Woodstock. Não teria o mesmo efeito se tivesse optado por um tom sério, saudosista ou de denúncia (imagino como seria o mesmo evento filmado por outro diretor, como, por exemplo, Oliver Stone).
O filme mostra o imaginário comum sobre o festival, mas vai além dele. Coloca o lado comercial, tira sarro tanto dos conservadores quanto dos libertários da época . Ambos, moralistas e doidões, provocam risos na plateia. E nenhum lados é apresentado como certo ou errado, não há uma disputa ou confronto ideológico. Todos parecem apenas humanamente desamparados.
Juntamente com o ar irônico, o diretor resolveu contar o festival focando na história pessoal de um de seus personagens: um rapaz que se sente aprisionado aos pais por uma dívida amorosa e que, no final, consegue se libertar e seguir o seu desejo. Quem sabe, aí, pudéssemos perceber melhor o que ficou de Woodstock, qual o seu legado além da sua apreensão imaginária vendida às massas.
Woodstock pode não ter transformado o mundo, mas pôde modificar uma pessoa. As revoluções, talvez, não sejam eventos de massas que precisam ser guiadas por um líder, mas acontecimentos individuais e solitários.
O foco do diretor não é colocado tampouco na parte musical do festival; nenhuma apresentação é mostrada. O personagem principal, nas três tentativas que faz, não consegue chegar perto do palco. Não há um fim, só uma trajetória. Mas, mesmo assim, a experiência de Woodstock foi fundamental para o rapaz ao lhe permitir uma transformação. Ao contrário do personagem do produtor do festival que considerou o evento bonito por ter sido um grande negócio comercial, o personagem principal viu a beleza no que Woodstock lhe trouxe de novo.
O filme de Ang Lee pode causar em quem o vê o mesmo acontecimento que Woodstock trouxe para o personagem principal e seu pai: a sensação de uma mudança individual, de uma revolução que nos enche de vida.
Fiquei me questionando se não seria saudosismo meu, uma crença muito freqüente, principalmente em pessoas mais velhas, de que o mundo era mais feliz no passado. Mas o meu sentimento não era de saudade e sim de estranhamento. Uma sensação um pouco confusa de que o passado era o futuro, um tempo que ainda não havia chegado. É como se hoje vivêssemos em um momento que, apesar de ser posterior temporalmente, fosse pré-Woodstock, pré-Nelson Rodrigues ou pré-Freud.
O filme de Ang Lee não me pareceu ser uma boa recordação de um acontecimento que ficou no passado, mas sobre algo que permanece novo.
O estranhamento de que algo que já aconteceu possa ser mais moderno do que o presente em que vivemos vem do fato de que a aparência nos mostra o contrário. Percebemos nosso mundo atual bem mais avançado que os anos 60 e 70 do século anterior. Nossos carros, nossos edifícios, nossos recursos médicos, nossos aparelhos de telefone, nossos cinemas 3D, nossas novas formas de comunicação, enfim, todas as tecnologias avançadas de que dispomos parecem afirmar a modernidade do nosso tempo.
E não é só em termos tecnológicos que temos a impressão de viver em uma era mais madura, mas, também, ideologicamente. As crenças e ilusões de Woodstock teriam se mostrado velhas com o tempo. Hoje, a possibilidade de um mundo livre de guerras, sem governos autoritários e em que não haja divisões hierárquicas entre as pessoas, soaria como uma bobagem infantil. Os seres humanos seriam por essência ruins, precisaríamos ser vigiados e controlados para não nos destruirmos. Esta seria uma verdade definitiva, imutável.
Mas Ang Lee pode ter enxergado um Woodstock além das aparências tecnológicas ou ideológicas. Um evento que seguiria moderno. Uma modernidade que talvez esteja além das formas, além do tempo, impossível de sofrer desgaste pelo passar dos anos. Não um modelo ou uma receita de como deve ser o mundo, mas um exemplo de que se pode transformá-lo. Que é possível que algo de novo surja no horizonte de nossas vidas. Que o valor está nesta possibilidade de mudança e não no que nos transformaremos, no fim em si. Só existe um fim: a morte, a não existência. Para seguirmos vivos, existindo, é necessária a incompletude permanente. E ela demanda a possibilidade de nos transformarmos, de podermos sair de nossos confortos imaginários e seguir adiante enfrentando o desconhecido infinito do universo.
Deste modo, o novo é aquilo que não se inscreve no tempo e, portanto, pode estar no passado, no presente ou no futuro. O moderno não é usar uma roupa, um cabelo ou um estilo assim ou assado. As experiências artísticas de vanguarda do último século que romperam com todos os padrões e o próprio capitalismo que transforma todas as aparências em mercadorias (vide o que foi feito de Che Guevara) esgotaram todas as possibilidades de que o novo esteja na imagem de alguma coisa. As aparências envelhecem.
Como é impossível alcançarmos um mundo perfeito, a demanda de que uma transformação, ou uma revolução, só tem valor se nos conduzir ao paraíso é uma exigência que tem por objetivo apenas justificar o imobilismo, a crença no não tem jeito de mudar. Se esperamos o impossível, ficamos paralisados.
O trabalho de Ang Lee não desqualifica Woodstock por não ter sido um experiência perfeita. Não diz que o festival foi em vão, que foi uma bobagem que envelheceu ou caducou. Pelo contrário, faz da imperfeição uma delicada comédia e, assim, presta uma leve e elegante homenagem a Woodstock. Não teria o mesmo efeito se tivesse optado por um tom sério, saudosista ou de denúncia (imagino como seria o mesmo evento filmado por outro diretor, como, por exemplo, Oliver Stone).
O filme mostra o imaginário comum sobre o festival, mas vai além dele. Coloca o lado comercial, tira sarro tanto dos conservadores quanto dos libertários da época . Ambos, moralistas e doidões, provocam risos na plateia. E nenhum lados é apresentado como certo ou errado, não há uma disputa ou confronto ideológico. Todos parecem apenas humanamente desamparados.
Juntamente com o ar irônico, o diretor resolveu contar o festival focando na história pessoal de um de seus personagens: um rapaz que se sente aprisionado aos pais por uma dívida amorosa e que, no final, consegue se libertar e seguir o seu desejo. Quem sabe, aí, pudéssemos perceber melhor o que ficou de Woodstock, qual o seu legado além da sua apreensão imaginária vendida às massas.
Woodstock pode não ter transformado o mundo, mas pôde modificar uma pessoa. As revoluções, talvez, não sejam eventos de massas que precisam ser guiadas por um líder, mas acontecimentos individuais e solitários.
O foco do diretor não é colocado tampouco na parte musical do festival; nenhuma apresentação é mostrada. O personagem principal, nas três tentativas que faz, não consegue chegar perto do palco. Não há um fim, só uma trajetória. Mas, mesmo assim, a experiência de Woodstock foi fundamental para o rapaz ao lhe permitir uma transformação. Ao contrário do personagem do produtor do festival que considerou o evento bonito por ter sido um grande negócio comercial, o personagem principal viu a beleza no que Woodstock lhe trouxe de novo.
O filme de Ang Lee pode causar em quem o vê o mesmo acontecimento que Woodstock trouxe para o personagem principal e seu pai: a sensação de uma mudança individual, de uma revolução que nos enche de vida.
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