segunda-feira, 13 de junho de 2011

MEDO

Um receio nos acompanha toda vez que temos a possibilidade de fazer algo diferente, algo novo em relação às normas e verdades estabelecidas em uma determinado meio social. Uma ameaça que sentimos de forma mais ou menos intensa e que se traduz em pensamentos variados: “estou abusando; estou sendo teimoso e radical; estou sendo arrogante; estou indo contra o mundo; estou sendo irresponsável ou inconsequente; estou ficando louco; não vai dar certo; serei punido; vou sofrer muito; vou perder as coisas que tenho; as pessoas vão se afastar de mim; vou ficar isolado; vou perder a oportunidade de ser feliz”.

Se saio de casa sem levar o agasalho, conforme tantas vezes advertido pela mãe, pronto, no outro dia acordo com um baita resfriado. Se deixar de fazer o seguro do carro, um bom senso recomendado por todos, posso contar com uma batidinha logo nas primeiras voltas. Se não comprar minha casa própria nem fizer uma previdência privada, como os precavidos colegas de trabalho fizeram, posso esperar um futuro na sarjeta. Se não acabar com o sal na minha salada e com as gorduras no meu bife, como sempre alerta meu médico, vou ter um infarto. Se não colocar um sistema de vigilância em minha casa, como toda empresa de segurança ensina, minha família em breve será vítima de uma violência. Se eu não tiver um corpo sarado e um carrão, como dizem os amigos, nunca vou conseguir conquistar uma garota, vou acabar solitário e infeliz.

Parece que toda verdade que circula em um meio social só funciona se vier acompanhada da ameaça de que vamos ter algum tipo de sofrimento ou perda caso não acreditemos nela. Como se todas as crenças fossem leis que estabelecessem uma proibição e uma punição para aqueles que as desrespeitarem. Como se o fator que as sustenta não fosse outro que não o medo: uma coisa só é verdadeira se tivermos receio de afirmar algo que seja diferente.

E, talvez, um grande medo seja não termos medo. Acreditamos que sem medo perderíamos a noção do perigo, nos exporíamos a situações de risco, perderíamos o controle sobre nós mesmos e sobre os outros, viveríamos em um caos pessoal e social. Uma vida bem regrada precisaria reconhecer e temer os seus limites. Uma sociedade, para bem funcionar, deveria fazer cada indivíduo ser temeroso de não cumprir as suas regulamentações e leis.

A autoridade de uma pessoa ou de uma instituição - mãe, pai, professor, médico, chefe, governo, igreja etc - só se mantém se a verdade que anunciam for seguida de uma ameaça que se cumpre na realidade. Caso alguém rompa a norma ditada e não receba a punição estabelecida, a crença em questão perde a sua consistência: se sair de casa sem agasalho e não me gripar, minha mãe fica sem a sua autoridade.

O medo, entretanto, é uma expectativa de que aquilo que estamos fazendo é errado e que podemos esperar pelo castigo. Quando temos medo, carregamos em nós a crença que dizemos combater. Quebramos a regra para dar errado, para recebermos o sofrimento prometido e assim reforçarmos a verdade que trazemos dentro de nós: “está vendo, eles tinham razão, quem mandou fazer isso, agora aguente as consequências”.

A dor que sentimos seria uma prova real da veracidade de determinada crença. Sentindo dor, sofrendo, mantemos firmes nossas verdades, sustentamos a realidade do mundo que nos rodeia. Quantas pessoas que, diante de algo que desestabiliza seu mundo, como uma perda, uma frustração ou um fracasso, não infligem a si mesmas sofrimentos dos mais variados? Por exemplo, é comum ouvir relatos de jovens que, cheios de angústia, recuperam a tranquilidade se cortando, vendo seu sangue escorrer, sentindo a dor na própria carne.

Quando perdermos aquilo que norteia as nossas vidas, quando nossos arranjos de realidade perdem a sua consistência, nada como o medo e a dor para podermos recuperar um sentido qualquer. Temer e sofrer organizam uma realidade, sustentam uma promessa de sentido para as nossas existências. Sem medo, temos o receio de ficarmos sem um norte. Melhor sofrer que não ter um sentido. E esse, talvez, seja o maior dos medos: perder o sentido da vida.

Muitos podem dizer que o maior medo é o da morte. Mas a morte só é temida por poder simbolizar, justamente, uma falta de sentido para a vida. Outras pessoas podem declarar que o seu grande medo não é perder o sentido nem morrer, mas sofrer uma dor física insuportável. Uma expectativa ilusória, uma vez que qualquer sofrimento físico tem um limite que é o quanto o corpo suporta. Nenhuma dor é ilimitada. É possível que esse engano só sirva mesmo para manter o medo e uma crença de verdade.

Mas seria possível uma outra forma de organizarmos nossa realidade, de encontrarmos ânimo em nossas existências?

O sentido que vem da esperança é a crença de que um dia seremos livres de toda dor, sofrimento e angústia, que encontraremos paz e equilíbrio em nossas vidas, enfim, a promessa de que um dia seremos completos e acabados. Mas, para mantermos essa expectativa, temos de permanecer sempre sofrendo, angustiados e imperfeitos. Um ideal só pode ser mantido se jamais for alcançado. Como se disséssemos uma coisa e fizéssemos outra. Dizemos que queremos nos completar, mas fazemos tudo para que isso não aconteça. Morremos de medo de ser completados, de perder o nosso lugar de queixosos da felicidade que nunca vem, de não nos vermos como seres sempre em falta de alguma coisa.

Para os devotos de religiões tradicionais, a satisfação plena virá em uma existência após a morte. Mas, cada vez mais, buscamos ser felizes ainda nessa vida. No modelo da promessa, quando jovens, acreditamos que a felicidade virá no futuro; quando mais velhos, pensamos que ela passou e não soubemos aproveitá-la.

Na esperança de felicidade plena, esperamos por algo ou alguém (ou Deus) que nos complete, que nos faça acabados. Dependemos de um outro para sermos felizes, buscamos ser reconhecidos e amados. Esse outro sabe de nós, ele tem o conhecimento daquilo que nos completaria, ele possui a verdade, ele tem a autoridade última, ele nos garante o sentido final para as nossas vidas.

Ao longo da história, entretanto, temos passado por um processo de perda da esperança em um sentido final e último. Percebemos que Deus e a Natureza têm várias vozes, várias interpretações, e elas sempre são feitas por humanos e todo humano é mortal, falível, incompleto. Nenhum homem ou mulher sabe tudo, ninguém pode nos dar uma garantia final, ninguém controla ou é dono da verdade. Perdemos o medo de saber disto. Podem nos queimar vivos que continuaremos a acreditar que ninguém é perfeito.

Por mais que certas pessoas, mesmo que investidas da maior autoridade, mesmo que possuidoras dos piores meios de nos fazer sofrer, tentem dizer que falam pela verdade, por Deus ou pelo Universo, sabemos que a verdade, Deus e o Universo continuarão sendo um eterno mistério. E por que não fazermos deste mistério impossível de ser revelado o sentido de nossas vidas? Em vez de uma promessa de um sentido final, um sentido que nunca se deixa apreender, que está sempre demandando uma resposta nova, um recomeço. Um sentido que não está no fim, mas em um eterno começo.

Um novo sentido que não está em um tempo idealizado, em uma promessa que nunca vem, mas se encontra permanentemente no presente, um presente que sempre nos escapa.

Para mantermos uma ilusão de completude, precisamos nunca sermos completos, precisamos do defeito, do medo e do sofrimento. Talvez, de forma diferente, se nosso sentido vier de um mistério que não pode ser esclarecido, possamos nos permitir viver sem os temores de sermos errados e de recebermos a punição. Possamos saber que as nossas respostas são sempre invenções e não a realidade em si; que, à sua maneira, cada pessoa inventa um mundo e que essa invenção nunca termina.

Na organização pela esperança que nunca chega, na demanda de fracasso para mantermos o ideal, acreditamos que todos os amores que encontramos em nossas vidas são ilusões e que só as nossas dores são reais. Em um sentido que venha de reconhecermos que não se pode tudo saber, tanto os amores quanto os sofrimentos são ficcionais. Assim como não há amor final e total, também não há dor última e incomensurável.

Sem um sentido final, podemos perder o medo de perder, de ficarmos de fora, de não sermos premiados com a felicidade completa. Não há mais razão para invejarmos um outro que supomos mais bem favorecido que nós. Sem medo de perder e sofrer, podemos, quem sabe, até mesmo nos arriscar mais no amor.

E será que, se perdermos o medo, vamos enlouquecer, cada um vai fazer o que quiser, vamos nos matar, vamos nos destruir? O resultado, talvez, seja bem diferente. Como nunca, poderíamos dar valor a humanidade e a nossa existência. Pois, sem medo, poderíamos descobrir que Deus e o Universo estão no mais completo silêncio, que eles precisam de nós para falar, para afirmar as suas existências.