Fazer filmes sobre o amor parece um tanto ousado e arriscado nos dias de hoje. É mais seguro e certo realizar ficções que mostrem a violência, a corrupção e as destruições provocadas pelo ser humano. Obras românticas soam como ilusões velhas, maniqueístas e cafonas.
Não se acredita mais no amor sincero. Existiria sempre um segundo e verdadeiro interesse por trás. Os homens, segundo as mulheres, só querem saber de sexo. Depois que o conseguem, todas as juras anteriores feitas por eles revelam-se mentiras cínicas. As mulheres, para os representantes do sexo masculino, no fundo estão apenas interessadas no dinheiro, no cartão de crédito ou em usufruir o prestígio daqueles por quem elas fingem ter amor.
Segundo esta visão, mais cedo ou mais tarde, aqueles que caírem no conto-do-vigário da paixão vão descobrir a dura verdade: a promessa de amor é sempre uma enganação. E quem se deixar iludir, vai ser usado e se dará mal. Na expectativa de ser traído ou abandonado, vive-se em permanente estado de defesa contra a idéia de se mostrar apaixonado. Se o outro descobre que me entreguei, vai me desprezar e me trocar. Os relacionamentos, então, se transformam em disputas de gato e rato. Só gosto quando não sou gostado, só sou gostado quando não gosto.
Para os descrentes, o convívio amoroso só ocorre por uma praticidade social ou para satisfazer necessidades físicas ou, como está na moda hoje, biológicas e evolutivas.
No mundo em que vivemos não é considerado bom negócio ter qualquer tipo de ilusão. Qualquer ideal, seja ele amoroso, artístico, político ou, como debatido nas últimas semanas, econômico, é visto como uma armadilha destinada a pegar os trouxas. Temos que ter salvaguardas e nos policiar o tempo inteiro. Os idealistas são vistos como tolos antiquados. A verdade que teria sido descoberta, depois de séculos de crendices idiotas, é que o ser humano é vil na sua essência, só funciona civilizadamente sobre pressão e medo. Se a nossa natureza é tão selvagem quanto a dos animais, nós também temos de ser adestrados e condicionados por mecanismos de punição e recompensa.
Voltando ao âmbito dos relacionamentos afetivos, é interessante observar que tanto os idealistas quanto os desacreditados acabam encontrando o mesmo desfecho. Ambos fazem do amor uma impossibilidade, um grande desencontro.
Para os céticos, o amor é uma mentira. Já no modelo idealista romântico, os amantes estão sempre separados por um obstáculo que os impede de realizar seu desejo de viver felizes juntos. Normalmente este encontro fica destinado a ocorrer somente após a morte, na eternidade. O representante clássico deste esquema é o romance de Romeu e Julieta. Mas podemos tomar exemplos mais modernos, como nas sofridas histórias dos filmes Love Story ou do mais recente O Segredo de Brokeback Mountain.
Os dois modelos, romântico e cético, por mais que não se reconheçam, compartilham de um mesmo mecanismo. Ambos acreditam que ideais possam ser verdades, têm fé que suas crenças possam ser uma realidade palpável. Para os românticos, a pessoa amada é a sua cara metade. Já os céticos têm como ideal a crença de que seu par é um animal interessado apenas em perpetuar seus genes.
É provável que Canções de Amor, filme em cartaz no momento, ofereça uma outra opção que não seja a de viver acreditando em um ideal que impeça o encontro amoroso. (Caso considere fundamental para o prazer de assistir a um filme o total desconhecimento de seu enredo, novamente recomendo que se veja o longa antes de ler o texto abaixo)
Nas primeiras cenas do filme, o casal principal vive uma crise comum aos relacionamentos de hoje. Ela quer que ele lhe dê provas de amor e, para provocá-lo em sua frieza, coloca uma outra mulher na história. Não dá muito certo e a moça carente morre inesperadamente sem alcançar o resultado pretendido. O rapaz, então, diante da perda, descobre que amava a parceira. Mas aí já é tarde. Seria mais um exemplo de amor romântico se o filme terminasse aí. Mas ele segue e com algumas surpresas.
O rapaz passa a ser alvo da investida decidida de um garoto que ele conhece por acaso. No começo resiste, faz cortes e recusas, coloca a impossibilidade do relacionamento dar certo em virtude das diferenças entre eles. Depois, diante da insistência do garoto, o mais velho cede e acolhe o seu amor.
Não considero que o mais importante no filme seja o fato de o relacionamento ocorrer entre dois homens. A história trata disto com grande naturalidade, como se não importasse muito o sexo dos personagens. O homossexualismo, pelo preconceito da sociedade, normalmente é apresentado no cinema atual como um obstáculo para a realização plena dos amantes, como no citado O Segredo de Brokeback Mountain. Canções de Amor não segue este caminho.
A diferença que o filme apresenta é a aposta feita pelo personagem do garoto na conquista do amor. Ele não desiste e nem se desencanta diante das negativas constantes do rapaz. Não se envergonha de procurar o seu amado no emprego, em segui-lo pelas ruas, em falar claramente do seu desejo. Ele parece não ter vergonha de desejar, de amar.
Quando recebemos uma recusa amorosa, é comum que fiquemos abalados, com raiva da pessoa desejada e, ao mesmo tempo, com baixa estima e perda de amor próprio. Vestimos facilmente a carapuça de mal-amados. Fazemos do nosso afeto uma carência chata. O garoto do filme soube manter a confiança mesmo levando vários pés na bunda. De alguma forma aprendeu a desvencilhar sua própria imagem do fato de não ter seu desejo correspondido. Quando aparecia um obstáculo, ele inventava uma solução em vez de ficar paralisado diante do problema. Persistindo, conseguiu transformar em realidade o seu sonho amoroso. Não ficou só na expectativa, como os românticos, ou na impossibilidade, como os céticos.
O garoto insistente não esperou pelo príncipe encantado que nunca vem, nem acreditou que seu amado fosse na verdade um sapo. Ele correu atrás, deu seu jeito para que a coisa acontecesse.
É possível que ele acreditasse que a pessoa querida não fosse um ser definido, acabado. Que poderia fazer surgir algo de novo naquele que ele ama. Não tinha a percepção que seu ideal amoroso fosse uma realidade externa pronta, mas algo que dependia do seu investimento, da sua invenção.
Talvez seja este o exemplo mais importante de Canções de Amor. Os ideais podem ser um meio de encontrarmos satisfação, uma ferramenta, e não a própria felicidade, um fim em si. Percebemos com a atitude do garoto que os ideais não são realidades palpáveis esperando pela nossa chegada, mas que eles são invenções nossas. A satisfação pode ser inventada e não descoberta.
Se temos a pessoa amada como um ideal final de felicidade que independe de nós, ficamos na insatisfação e o amor se torna uma escravidão. Mas se sabemos que idealizamos uma pessoa para poder amá-la e ser felizes, o amor é uma libertação.
Paris, em Canções de Amor, é novamente apresentada como uma cidade com vocação romântica. Mas não com uma cara velha. No filme vemos uma capital moderna do mundo globalizado. De forma realista, circulam pelas suas ruas e praças pessoas de diferentes cores, origens e classes econômicas. Não é a cidade glamourosa a que estávamos acostumados a ver no cinema. Não é o lugar em que se passavam histórias de amor idealizadas e muito distantes da nossa realidade. Este era um cinema para sonhar e não para realizar. De maneira diversa, ao sair de Canções de Amor, podemos nos perguntar por que também não viver uma história assim.
Ficamos um pouco decepcionados quando perdemos a esperança do ideal externo. Mas nos tornamos mais livres e ao mesmo tempo mais responsáveis pelo nosso destino. Além disto, como os atores do filme, podemos cantar canções de amor.
quinta-feira, 9 de outubro de 2008
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Um comentário:
muito libertador, de fato.
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