Em um debate na campanha presidencial norte-americana de 2004, perguntaram aos candidatos George Bush e John Kerry o que eles pensavam sobre a legalidade do aborto. Bush, em tom decidido, disse que respeitava as leis que permitiam esta prática em seu país, mas concluiu afirmando sua opinião contrária ao aborto devido às suas crenças e valores religiosos. Já Kerry, um tanto titubeante, respondeu que defendia a legalidade porque ela era democrática ao permitir que tanto aqueles a favor como os contrários à interrupção da gravidez pudessem agir de acordo com as suas consciências. Entretanto, de maneira diversa do seu concorrente, o candidato democrata se esquivou de dar sua opinião pessoal sobre o aborto, se era favorável ou não. É provável que tenha se comportado assim para não perder votos no temido eleitorado conservador americano.
Independente de estar certo ou não em suas crenças, George Bush saiu do debate com uma imagem de firmeza e segurança, e Kerry como alguém fraco e sem confiança em si próprio. Por fim, os eleitores, em sua maioria, acabaram se decidindo por Bush. E o mundo sofreu mais quatro anos com seu desastroso governo.
Lembrei desta história depois de assistir ao filme O Homem Bom, do diretor Vicente Amorim e que está atualmente em cartaz. No filme, um professor universitário, bom pai e bom filho, perde a oportunidade de ajudar um amigo judeu de escapar da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Mesmo não concordando com os princípios políticos de Hitler e seus companheiros, ele aceita promoções oferecidas pelo partido nazista. Inicialmente não acredita (ou não quer saber) na possibilidade de que um mal maior possa vir do entusiasmado movimento que prometia colocar ordem, trazer segurança e recuperar o orgulho da Alemanha. No final, tentando encontrar o amigo feito prisioneiro, o bom professor termina por se deparar com a verdade dos campos de concentração. Surpreso e tocado conclui: é real!
O que une a lembrança do debate na eleição americana e o filme de Amorim é que nos dois casos algo deixou de ser dito ou feito em nome de se manter uma boa imagem. John Kerry não quis causar uma má impressão no eleitorado conservador, enquanto o professor não quis queimar o seu filme junto aos seus benfeitores nazistas. Um achava que, assim, poderia ganhar as eleições, e o outro pensava em receber promoções.
O homem bom talvez tenha outro compromisso que não seja o de manter uma boa imagem em seu meio social, em ser um cidadão exemplar. Seu compromisso maior é com algo íntimo, algo que percebe como verdadeiro, mesmo que seja contra a verdade corrente na sociedade em que vive, mesmo que se descubra solitário em seus questionamentos, mesmo que isto possa lhe trazer riscos, que possa lhe causar prejuízos econômicos e profissionais ou levar à separação familiar. Ele, por mais que a princípio tente não saber da verdade que lhe persegue, acaba por reconhecê-la e paga o preço de defendê-la. É um homem que não engana a si próprio. Mais do que salvar sua pele, o homem bom vive por sua honra pessoal. Sem isto, percebe que a vida humana não tem valor, que se é apenas um boneco que segue as massas, um maria vai com as outras. Quem assistiu ao belo filme alemão A Vida dos Outros pode entender melhor o que é ser um homem honrado, um homem bom.
Facilmente identificamos o que deveria ter sido feito, qual causa boa defender diante dos regimes autoritários do passado. Sabemos que os homens bons foram aqueles que combateram os nazistas, os soviéticos ou as ditaduras militares da América Latina.
Mas e hoje, onde podemos perceber a necessidade de pessoas honradas?
Talvez pudéssemos começar pela política. Homens e mulheres que contrariem verdades estabelecidas, que enfrentem o medo do suposto conservadorismo do eleitorado. Quantos políticos brasileiros, por exemplo, têm a coragem de vir a público defender o aborto, a descriminalização do uso de drogas ou dizer que não acredita em Deus? Poucos, a maioria está preocupada em manter a sua pretensa boa imagem.
Não sei se o eleitorado julga um político por aquilo que ele diz ou defende. É provável que valha mais a atitude. Ninguém gosta de quem fica em cima do muro. Os conservadores parecem mais sinceros na defesa de seus princípios, se mostram mais confiantes e não têm vergonha de dizer publicamente o que pensam.
Os liberais, os que praticam uma vida diferente dos valores morais tradicionais, parecem indecisos e envergonhados de suas atitudes. Quando tentam apoiar uma causa contrária ao conservadorismo, usam de argumentos indiretos, como as vantagens econômicas de se legalizar o aborto, e nunca uma afirmação direta do seu valor ético. Por escamoteá-las, passam a impressão de que suas práticas e crenças são erradas e pecaminosas.
E se os políticos acreditam e esperam um eleitor retrógrado e conservador, é desta maneira que as pessoas vão se comportar, até pela falta da opção de uma outra expectativa.
Deste modo, vamos assistindo ao crescimento de bancadas religiosas e outros grupos moralistas. Governantes de esquerda que, no seu íntimo, não acreditam em Deus, fazem concessões conservadoras para ficar bem com o eleitorado. Dia após dia, leis restritivas à liberdade individual são criadas em nome da saúde e da segurança coletiva, tudo na maior normalidade. Até que um dia, novamente, a dura realidade caia sobre as nossas cabeças. Espero que neste momento tenhamos, pelo menos, a dignidade de não se permitir o pior e o mais inútil dos pensamentos: poderia ter feito e não fiz.
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
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2 comentários:
Ótimo texto. Não há nada mais difícil do que tornar-se sujeito e manter o compromisso com nosso íntimo.
Olá G.H., penso que as pessoas podem escolher um compromisso com o ideal, com o ilusório, ou outro mais íntimo, uma busca talvez infinita de verdade, daquilo que é real. Os dois caminhos têm suas dificuldades e alegrias. Obrigado pelo comentário. Abraço
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