Christophe Honoré talvez seja o diretor de cinema em atividade que mais questiona e investiga as particularidades dos relacionamentos amorosos na atualidade.
Em seu último trabalho, A Bela Junie, podemos acompanhar as desventuras de jovens estudantes e professores na busca de um amor. Ao terminar o filme, os espectadores mais românticos podem sair do cinema com uma certa melancolia. Os mais apaixonados personagens, aqueles que defendiam uma união sincera entre os amantes, aqueles que não abriam mão de encontrar alguém para quem devotar e receber um amor exclusivo e pleno, têm destinos trágicos e solitários. O ideal de amor não se realiza, a infelicidade permanece. Mas os práticos, aqueles que aceitam que seus parceiros sejam infiéis, que os relacionamentos sejam curtos e superficiais, nada muito além de sexo, também não parecem felizes em sua resignação.
Será mais desejável reconhecer que a felicidade amorosa não existe, que ela é uma ilusão boba, que não devemos perder tempo com sonhos irrealizáveis e apenas se contentar com as pequenas satisfações, em garantir uma trepada, um prato cheio de comida ou uma adrenalina qualquer? É difícil olhar para a bela Junie, sozinha em sua viagem no final do filme, e não ser solidário com a sua busca de amor. Por mais que a realidade pareça dizer o contrario, é como se, ao abrir mão disto, estivéssemos abrindo mão de nós mesmos, de que a vida tenha qualquer valor, razão ou encanto de ser vivida. Como se aqueles que desistiram da procura amorosa fossem mortos vivos, alguém que apenas cumpre tabela à espera de uma morte que não deve tardar. Sabemos que, no fundo de todo resignado, esconde-se uma Junie.
Um paradoxo humano estranho. Por mais que percebamos que encontrar um outro que nos traga felicidade é impossível, que os amores mais cedo ou mais tarde podem passar, que ninguém nos é 100% fiel, não conseguimos desistir do desejo de realizar este impossível.
O trabalho de Honoré trata justamente deste conflito. É interessante que o roteiro do filme tenha se baseado em um livro do século 17, La Princesse de Clèves, de Madame de La Fayette. Isto demonstra como o dilema amoroso sempre perseguiu homens e mulheres. Mas A Bela Junie consegue ser contemporâneo ao colocar questões e impasses que a quebra de valores e padrões rígidos de comportamento trazidos pela modernidade provocou nos relacionamentos afetivos.
Até pouco tempo atrás , e mesmo para muitos hoje em dia, os relacionamentos afetivos tinham um componente amoroso e outro de obrigação social. Na maior parte das vezes, dissociados um do outro. Namorava-se e se casava com alguém por um dever em relação à família e à sociedade, mas ficava-se com a impressão de que esta obrigação impedia a pessoa de encontrar o seu verdadeiro amor.
Os práticos daquela época diziam que com o tempo se aprendia a gostar e respeitar aqueles que o dever pôs em nosso caminho. As paixões eram consideradas loucuras de pessoas imaturas ou pertencentes apenas às obras de ficção. Os compromissos sociais impediam a realização afetiva plena. O amor era cerceado por inúmeras proibições. Aqueles que se entregavam às paixões, como alguns poetas, deveriam ter uma vida degradada e breve.
Mas, nas últimas décadas, as limitações foram caindo por terra. Aprovação do divórcio, independência econômica dos parceiros, separação total de bens, casais que apenas moram junto sem oficializar o relacionamento, métodos anticoncepcionais, sexo sem compromisso, aceitação de uniões do mesmo sexo. É como se a casca fosse caindo e hoje tivéssemos que nos defrontar com o osso das relações amorosas. O que fazer agora que nada me impede de ser feliz com o meu ou minha amada?
A questão principal de A Bela Junie não é sobre o relacionamento entre professor e aluno, um amor proibido. Ao contrário, o que se questiona, o que nos atormenta e provoca, é o que fazer quando temos a liberdade para amar. Pode ser professor com aluna, homem com homem, mulher com mulher, velha com novo, rico com pobre.
De repente as famílias de Romeu e Julieta fizeram as pazes e os apaixonados amantes não precisam mais se matar para realizar o seu amor. Terão agora de bancar e sustentar a sua afeição, já que nada exterior, nenhuma desculpa os afasta desta felicidade. Provavelmente, assim que Romeu chegar bêbado em casa e só prestar atenção no jogo de futebol, Julieta passe a sonhar com o passado de brigas familiares ou comece a desconfiar que se enganou, que talvez Romeu não seja o homem da sua vida.
A saída mais frequente a que temos assistido diante da ausência dos culpados pela nossa infelicidade amorosa é dizer que o próprio amor é uma ilusão. Esta seria a verdade prática dos nossos tempos. Em essência, ela não difere da praticidade anterior. Os práticos atuais são os resignados do amor. É a realidade que se tenta impor agora. Os moralistas de ontem viraram os cínicos e céticos de hoje. Não se diz mais que a paixão é uma deformação do diabo que perturba a boa ordem familiar, mas uma patologia ilusória que vai contra a natureza animal humana preocupada apenas em espalhar genes egoístas. Do mito religioso passamos ao mito biológico para justificar o nosso lugar de eternos mal-amados.
O amor continua sendo visto como uma coisa para os fracos, para os acometidos pelo sofrimento de se iludir.
Mas talvez possamos dar ao dom de iludir outro lugar que não seja o do pecado, o do erro ou da doença. Em vez de percebermos as fantasias como engano, podemos interpretá-las como condição, como necessidade humana básica. Religiões, ciência, amores, tudo isto são ilusões criadas pelo ser humano na tentativa sem fim de dar conta de um mundo alheio a qualquer sentido.
Nos relacionamentos amorosos, para que o conto de fadas continue depois que as bruxas forem derrotadas, é necessário continuar escrevendo a ficção.
Junie fugiu acreditando que seu querido professor jamais poderia amá-la como ela gostaria. Que ele, no fundo, era tão enganador quanto os outros rapazes. Mas ela poderia tomar um rumo diferente: abandonar seu barco e voltar para o seu professor. Deveria apostar que se pode fazer alguém ser o seu amor, que príncipe ou vilão são invenções ou expectativas criadas. Que mudando de expectativa se pode mudar aqueles que amamos. Que ninguém é pronto no mundo, que estamos todos permanentemente à procura do significado de nós mesmos. Podemos oferecer e insistir em significações ou interpretações novas para aqueles que amamos. Uma possibilidade de perceber quem se ama para além do eixo perfeição/imperfeição, que se veja o outro como um mistério permanente e encantador.
O nosso amor não é a nossa cara-metade perdida no mundo à espera de que uma sorte ou ventura qualquer a coloque em nosso caminho. Amor não é descoberta, mas é criação. Não é espera, nem dádiva, mas ação, persistência. Os que aguardam seu verdadeiro amor chegar estão sempre insatisfeitos com aqueles que encontram na vida. Carregam permanentemente a dúvida se determinada pessoa é a certa. Guardam a esperança de que exista alguém melhor, mais interessante, esperando ou procurando por elas. Para realizar um amor, é possível que tenhamos de descobrir que o que ficou de fora não existe, que podemos contar somente com aquilo que é inventado. Não há amores perdidos, mas se pode ganhá-los se apostarmos em sua criação.
Bons amantes devem ser bons ficcionistas.
quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
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5 comentários:
gostei muito dessa perspectiva.
Curioso. Eu não tinha visto a Junie como resignada, bem pelo contrário. Tinha encarado a personagem dela como alguém que reconhece a possibilidade de um "grande amor" mas opta por não vivê-lo (ainda mais depois da morte da mãe) - enfim, ela não quis escrever esta ficção, uma atitude que me pareceu super madura para uma menina de 16 anos. E me chamou a atenção como os personagens adolescentes do filme se entregam sem limites às suas fantasias e sofrimentos, o que tentamos evitar na vida "adulta", às vezes.
Oi Mariana e João, agradeço a visita, os comentários e os pontos de vista. Acredito que a liberdade nas relações afetivas e em outras áreas, ao contrário do que alguns temem, pode orientar, organizar e dar limite. E é uma solução mais adequada ao mundo atual.
Abraço
marlio, caro: gosto muito do filme do honoré, de sua aspereza, de seu desalento. como arte, é uma visão que me interessa muito , extremamente bem expressa. mas como ser humano que sou, devo dizer que a análise que fazes das relações humanas a partir do filme me soa extremamente lúcida, consistente, humana, inteligente. gostei demais de teu texto. que bom que esse belo "a bela junie" te inspirou a empreender essa viagem de márlio.
p.s. aproveito a oportunidade pra te convidar a ver "monólogo da velha", do marcelo mirisola, que vou estrear quarta-feira, no satyros 1, 23h. será um grande prazer tê-lo na platéia. grandabraço!
Guzik, obrigado pelo generoso comentário e pelo convite. Com certeza vou dar um jeito de conferir a viagem da velha apresentadora. Sucesso e abração,
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