quinta-feira, 17 de julho de 2008

LEI SECA E SEGURANÇA TOTAL

Estamos vivendo uma época de liberdade sem igual na história da humanidade. Liberdade para pensar no que quisermos, para escolher a forma como gostaríamos de viver, com quem nos relacionar, qual profissão ter. A internet nos traz uma possibilidade de acesso a informações e opiniões jamais pensada anteriormente. Os governos autoritários e os controladores de plantão se desdobram em tentativas, na maior parte de vezes fracassadas, de lhe impor algum limite.

Mas a liberdade assusta. Muitos consideram que o ser humano não está preparado para conviver com esta falta de restrições. Associam um homem mais livre a um homem mais violento e destruidor. Precisamos de leis duras, de proibições e punições para podermos viver em sociedade. Somos selvagens em nossa essência, dependemos de regras para nos civilizarmos.

Temos a impressão de que a realidade confirma a expectativa acima. O mundo estaria cada vez mais violento, as pessoas mais perversas e corruptas, cada um querendo apenas garantir o seu sem se preocupar com o outro. Diante do caos, tem sido grande o clamor pela volta de uma autoridade rigorosa que ponha ordem na bagunça.

Os governantes, atentos à opinião pública e interessados em preservar uma boa imagem junto aos seus eleitores, se mostram decididos e fortes, apresentando, dia após dia, medidas restritivas à liberdade individual. As pessoas, em nome de sua segurança pessoal e de seus familiares, aceitam esta perda sem a menor queixa. Querem um estado regulador.

O Brasil, sempre correndo atrás, faz seu primeiro grande esforço para controlar o desvario dos seus cidadãos e ser um país sério, moderno e confiável. O presidente, alvo de maldosas insinuações sobre sua devoção etílica, assina a lei seca para motoristas. Tolerância zero com condutores mesmo que minimamente alcoolizados. Blitz com bafômetros nas ruas e a prisão de vários motoristas mostram que a coisa é pra valer. E as inquestionáveis estatísticas provam que a lei é correta e eficaz. Os dados revelam grande diminuição no número de acidentes, no de pessoas atendidas nos serviços de emergência dos hospitais e de mortes no trânsito. Até mesmo a violência doméstica teria caído. Ninguém pode ser contra tal realidade.

Mas não precisamos de estatísticas para saber que, se proibimos as pessoas de dirigirem sob efeito do álcool, teremos menos acidentes. É evidente que toda restrição alcança, pelo menos inicialmente, um efeito de controle. Se fechássemos todos os bares da cidade, ou melhor, se proibíssemos todos os jovens de saírem de casa à noite, conseguiríamos reduzir ainda mais o número das ocorrências violentas. E por que não fazê-lo, se a lógica é abrirmos mão da liberdade em nome da segurança? O que pode parecer um excesso hoje, pode muito bem se converter em uma norma amanhã, quando os efeitos iniciais começarem a se mostrar insuficientes. Segurança total exige restrição total.

A sociedade dorme mais tranqüila sabendo que eliminamos o grande culpado pela nossa violência no trânsito e em casa: o álcool. O problema da convicção na necessidade de rigor legal é, justamente, a rapidez e a facilidade, confirmadas por dados estatísticos óbvios, com que elegemos a causa dos nossos infortúnios. Não queremos saber de aprofundar a discussão sobre nosso mal-estar. Por que a maioria das pessoas bebe e não sai por aí agredindo terceiros? Por que se bebe e se consome tanta droga? Por que se usa tanto antidepressivo? Por que temos a expectativa de resolver nossas insatisfações apenas usando pílulas?

É mais fácil acharmos um inimigo exterior a nos responsabilizar pelo nosso descontrole. E parece que a segurança que esperamos do Estado é esta: que os governos nos protejam dos nossos malfeitores externos. Abrimos mão de nossa liberdade e a damos para os governos na esperança de que eles, assim, possam encontrar e aniquilar os vilões do mundo.

Contra motoristas bêbados e assassinos, abro mão do meu vinho no jantar, do meu chope no fim de tarde, de me divertir com amigos, do direito de não criar provas contra mim e não ser constrangido em uma blitz policial. Contra os terroristas, aceito que minha liberdade de ir e vir seja restringida e minha vida espionada. Contra os criminosos, aceito que se instalem câmeras por todo lado, prontas para flagrar os atos de delinqüência. Pelo combate aos dois últimos, faço vista grossa para a tortura, as prisões arbitrárias e as cenas de intolerância e preconceito.

Na Itália, os eleitores, em nome da segurança nacional, aplaudem a atitude do atual governo, acusado de corrupção, de estabelecer leis que garantam privilégios jurídicos para seus membros em troca de leis que persigam os inimigos da pátria: os imigrantes e principalmente os ciganos, que devem ser submetidos a um fichamento involuntário. Como podemos esquecer que foi na Itália que inicialmente ganhou forma a história de regimes autoritários que terminou nos crimes do nazismo?

Não podemos desconsiderar os exemplos do passado. Do mesmo modo que nas décadas de 20 e 30 do último século, hoje, também, países que outrora eram hegemônicos começam a perder a vitalidade e a ter sua supremacia ameaçada por emergentes da periferia. Em vez de se proporem uma renovação, uma mudança de paradigmas, os habitantes destes países preferem apontar um culpado pela sua decadência. O que nos atrapalha são os jovens que só querem saber de festas e drogas, os imigrantes e os terroristas muçulmanos como antes foram os judeus, os homossexuais e os comunistas. Os cidadãos passam a demandar governos fortes e enérgicos, que tragam fórmulas mágicas para recuperar o vigor econômico. Chega da lengalenga de esquerdistas românticos, queremos soluções práticas e concretas. Mais ordem, mais leis, mais proibições, mais polícia na rua.

Picaretas, covardes, enganadores e moralistas de todos os tipos se apresentam, então, como aqueles capacitados para a tarefa de limpar o mundo de seus males. Os canalhas estão no poder liderando governos, empresas ou outras instituições. Como países de população tão desenvolvida podem eleger pessoas como Bush ou Berlusconi? Do mesmo modo que os alemães, o povo mais iluminado e esclarecido da Europa, no passado, apoiaram Hitler.

Assim como na Alemanha nazista, encaramos com absoluta normalidade o fato de, a cada dia, a nossa liberdade individual estar sendo abolida em nome da segurança e do progresso. Os mesmos ideais higienistas, disfarçados de cientificismo e verdades matemáticas, embasam a cultura de saúde total e risco zero. Quem ousa ser contra a lei seca diante da redução nas estatísticas de acidentados? Como poucos alemães, no período pré-guerra, ousaram criticar Hitler e seus comparsas frente ao pujante crescimento econômico e bélico implementado por eles.

Sabemos como termina a busca por uma vida sem ameaças e pelo clamor a um outro que nos traga a segurança total. A história nos fornece exemplos recentes que mostram que, quando abrimos mão da responsabilidade pela nossa liberdade e a entregamos ao Estado, este se agiganta e se torna um monstro impulsivo que acaba encontrando, como única forma de controle, a destruição dos controlados. Talvez este seja o preço de não querermos saber do nosso mal-estar permanente e sem cura, de que não se pode viver sem riscos. Para se anular os riscos, somente anulando a nós mesmos.

O Brasil deveria aproveitar a oportunidade histórica e, em vez de, provincianamente, copiar modelos de proibição externos, bancar que seus cidadãos podem ser responsáveis pela liberdade que têm. É provável que, ao lado da riqueza única de nossa música popular, a liberdade que possuímos no país, mesmo com todos os custos sociais, seja o grande barato de experimentar a vida como brasileiro. Possivelmente vivemos em um dos países mais livres do mundo. Podemos interpretar isto negativamente, culpando a falta de rigor e controle por todo nosso atraso, violência e corrupção.

Mas podemos ser mais criativos e inverter a ordem das coisas. De quem copia modelos de desenvolvimento para quem ensina a possibilidade de viver feliz abrindo mão de governos fortes, restritivos e punitivos. Pode ser esta a nossa grande diferença em relação à China, por exemplo. Na história da humanidade, os países que defenderam a liberdade acabaram por tomar a dianteira. O novo surge onde há liberdade.

Em uma sociedade que se baseia em proibições, a satisfação está naquilo que é proibido. Beber onde reina a lei seca é muito mais gostoso. A civilização, assim, é vista como um empecilho para a nossa satisfação plena. É um mal necessário, que nos controla e nos dá limite. Mas no fundo, invejamos os libertinos e os criminosos, aqueles que arriscam ser imorais e viver fora-da-lei. Neste mundo, queremos, de forma oculta, a destruição da civilização.

Mas podemos perceber a civilização não como aquilo que nos castra, que nos impede de encontrar a felicidade, mas como a única possibilidade de encontrar satisfação. Quando vencemos as proibições, encontramos apenas frustração e vazio, nunca a realização prometida. Sabemos, por experiência própria, que aquilo que antes não nos era permitido perde a graça quando está ao nosso alcance.

A felicidade não está naquilo que não podemos ter. Ela só pode ser inventada e nunca é total. E a civilização é que nos fornece as ferramentas para inventarmos. Além dela, só existe o nada. Assim, podemos amar a civilização.

Toda invenção é um risco. Se buscamos a segurança total ficamos imobilizados pelo medo paranóico e perdemos a possibilidade de inventar, de brincar e ter alegria. Não seria este, por fim, o objetivo das leis secas? A inveja de moralistas envelhecidos desejosos de acabar com a alegria do mundo?

3 comentários:

flávia coelho disse...

Admiro sua coragem em se expor assim, gosto muito do que escreve. Parabéns.

Márlio Vilela Nunes disse...

Obrigado Flávia. Seu retorno é muito importante. Grande abraço

Unknown disse...

Márlio, estava eu a procura de um artigo que me desse uma luz para redigir um texto que usarei em uma prova da faculdade, quando felizmente me deparei com este seu artigo. Amei o que escreveu e me será de grande valia para a tal prova, obrigada! A propósito, este endereço já está adicionado como favoritos!