quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O MÉDICO-DEUS

Na semana passada, li no jornal Folha de S. Paulo, dois comentários feitos por dois colegas médicos que me provocaram algumas questões.

O primeiro foi feito pelo ministro da Saúde que, feliz com a diminuição no número de acidentes de trânsito após a vigência da lei seca, afirmou que punição funciona mais que educação. Concluiu dizendo que a sociedade precisa de um pai, no caso, o Estado.

Nos últimos textos que postei, tentei expor algumas razões pelas quais acredito que o Estado é completamente incapaz para administrar a liberdade das pessoas, só entendendo o lugar paterno por meio do autoritarismo. O Estado é pai porque detém as forças de repressão, pode lhe dar uma cacetada caso você faça algo que ele julgue errado. Não é pai porque tem a sabedoria para manter a boa convivência entre seus filhos. Este conhecimento, sabemos, é impossível. Então, só restam a ameaça de punição e o medo. E esta parece ser a conclusão do ministro sobre como conseguir civilidade entre as pessoas.

Não me assustaria se, diante do exemplo de tamanha autoridade, registrássemos um aumento no número de pais que castigam fisicamente seus filhos em nome da boa educação. Quanto retrocesso. Como querer enfrentar os problemas de hoje com soluções do passado pode nos ser prejudicial ou mesmo fatal. Ministro, não é de pai que precisamos, é de responsabilidade. E ela só vem quando sabemos que temos que nos virar sozinhos na vida. Que nenhum outro nos garante segurança ou felicidade.

O segundo comentário foi feito por um professor de medicina da USP. Ele afirmou que quando consegue curar um paciente com câncer e, assim, salvar-lhe a vida, sente-se como um Deus. Tem, então, que se beliscar para se perceber humano.

É provável que o professor tenha feito esta declaração com a intenção de demonstrar humildade. Mas muitos colegas e mesmo pacientes têm fé nesta crença: o médico-Deus. E, em vez de nos beliscar para nos vermos como humanos, talvez bastasse a nós médicos apenas ser um pouco mais críticos.

Não acredito que médicos salvem vidas. A batalha contra a morte é, desde sempre, perdida. Mas o exercício da medicina pode prolongar a vida e promover alívios para o sofrimento. E estas possibilidades, por si, já valem uma vida.

Mas o problema dos médicos-deuses é criar a expectativa de que a medicina poderá nos livrar de todos os sofrimentos e da morte. Eles difundem a crença de que é possível um conhecimento total sobre o corpo humano e aquilo que o condiciona. Se algo deu errado, foi por falta de conhecimento. Não há lugar para o desconhecido, para o acaso na matemática dos médicos infalíveis. Eles opõem conhecimento total à ignorância e vida à morte. Uma derrotará a outra.

As modernas técnicas de avaliação do corpo humano, a possibilidade de diagnósticos mais precisos realizados por máquinas cada vez mais sofisticadas (e caras) e a promessa de uma prática totalmente baseada em evidências numéricas científicas alimentam ainda mais a ideologia de uma medicina que eliminará o desconhecido e a morte.

Médicos, como no passado se ocuparam os sacerdotes, estão encarregados de dizer o que é certo ou errado para se ter uma vida feliz. Não fume, alimente-se bem, faça exercícios: estes são os mandamentos do homem moderno. Uma vida boa é uma vida saudável, regrada. Só que, agora, não é a autoridade religiosa que dita as regras, mas médicos que se dizem portadores das verdades científicas.

O médico-Deus sustenta a idéia de que só seremos felizes se acabarmos com todas as dores e com a morte. Como isto é impossível, seus pacientes estão condenados a uma vida insatisfeita, esperando uma felicidade que nunca virá.

E apesar de todo apelo à saúde, de que se sigam corretamente todas as recomendações dos doutores do bem-viver, as pessoas continuam e continuarão a adoecer, novas doenças a surgir e mortes a ocorrer. E, se não existe acaso, então a culpa por isto é da medicina e dos médicos. Se não o têm, deveriam ter o conhecimento necessário, cumprir a promessa feita.

Deste modo, o exercício diário da medicina tem se tornado cada vez mais estressante para os profissionais. Se acaso algo não der certo, poderei ser processado. A responsabilidade está toda com o médico. Não se informa aos pacientes e nem à sociedade que todo tratamento tem uma dose de risco, de efeitos indesejáveis desconhecidos, que mesmo o médico mais estudado e habilitado não está livre de ter insucessos e que os dados científicos não são verdades definitivas. Um acaso que a própria estatística considera, ainda que de forma atenuada, uma vez que ele não pode ser dimensionado com precisão. Provavelmente se tema que estas informações afastem a clientela e diminuam os ganhos.

Os pacientes não querem saber que têm a sua cota de responsabilidade ao escolher determinado médico e determinado tratamento. Se usam serviços públicos de saúde, são responsáveis pelos políticos que elegem. No fundo, querem, também, ignorar o desconhecido, o acaso. Se der errado, tenho sempre alguém para culpar. E como os médicos não são deuses, não são senhores do destino alheio, em algum momento vão falhar e serão, então, denunciados. Como no caso do ministro em relação aos motoristas, acredita-se que médicos só funcionem bem se estiverem sob constante ameaça de punição. Um advogado ao lado talvez venha a identificar mais um médico do que o velho estetoscópio no pescoço. Prefere-se pagar este preço a frustrar a expectativa divina dos clientes.

Vender a idéia de um médico-Deus é vender uma ilusão. E o destino de toda ilusão é ser desmascarada. No mundo das doenças e seus tratamentos , promessas enganosas há muito são devidamente nomeadas: charlatanismo. Um medicina sustentada em crenças ilusórias pode estar condenada a desaparecer.

Mas a medicina pode seguir outro caminho, um que lhe seja mais próprio. Podemos fazer valer uma afirmação que desde os tempos de estudantes de medicina ouvimos e que erroneamente nos parece desgastada e algo ridícula: A medicina é uma arte. Em vez do médico-Deus, o humano e falível médico-artista.

O médico-artista, mesmo que realize cirurgias ou outros procedimentos, é clínico por excelência. Acredita que cada caso é um caso (outra importante frase do repertório médico que necessita ter seu valor posto em prática), que o dia-a-dia e a experiência clínica é o que contam na hora de tomar uma decisão.

No futuro, ao contrário do que se imagina, é provável que os médicos mais necessários e modernos sejam aqueles habilitados na prática clínica e não os pesquisadores das últimas evidências científicas ou os que tenham acesso aos mais avançados e caros recursos tecnológicos.

Se acreditarmos que um bom tratamento deve-se principalmente à quantidade de informação científica armazenada, à capacidade de cruzar informações e à precisão matemática na realização de procedimentos, os médicos podem, assim, ser substituídos, com muito mais eficácia, por computadores e robôs.

O médico-Deus quer descobrir um padrão geral, uma receita infalível de como curar. E os pacientes, nestas condições, são vistos como números equivalentes, como probabilidades gerais e não como casos particulares. Mas, no fundo, o médico-Deus não tem valor. O valor está no conhecimento, nas fórmulas prontas, e qualquer um pode ter o mesmo conhecimento, desde pacientes, que podem se informar via internet, até uma máquina. Médicos-deuses são descartáveis.

O médico-artista tem uma sabedoria sobre o singular. Sabe apostar em um tratamento específico para cada paciente, a cada momento. Ele usa da sua experiência e do conhecimento adquirido mas inclui também o acaso, o desconhecido. Reconhece que uma decisão envolve algo que está fora da razão, uma sensibilidade, uma intuição. Quando obtém sucesso, ele não sabe explicar exatamente o porquê disto. Tem o entendimento de que o mesmo tratamento para outro paciente com um diagnóstico igual e nas mesmas condições pode não funcionar.

Em vez de temer e se acabrunhar frente ao impossível da morte e de tudo saber, o médico pode fazer do acaso um aliado. E é possível que, apesar de surfar sobre o desconhecido ou talvez até por isto, ele, para a nossa surpresa, possa acertar mais do que o médico medroso que quer uma receita do que é certo fazer.

O médico-artista não fica na defensiva, tem prazer e alegria pela clínica, pelo exercício diário da medicina e pelo contato com os pacientes.

Assim como os artistas da pintura, da literatura ou da música, o médico cria algo que não existia no mundo. Ainda que de forma precária e temporária, ele realiza um intervenção que muda um rumo que parecia determinado pela natureza. Inventa uma novidade ao remediar um sofrimento, tratar uma doença, prolongar uma vida. Mais do que salvá-la, médicos podem emprestar à vida uma beleza fugaz.

2 comentários:

G.H. disse...

Teus textos são ótimos. Leio sempre.

Só um comentário: não seria "que mesmo o médico mais estudado e habilitado NÃO está livre de ter insucessos...". Me parece que ficou faltando um não, ali.

Anyway, keep writing.

Márlio Vilela Nunes disse...

Obrigado pela correção e pelo estímulo.
Abraço