sexta-feira, 13 de março de 2009

NÃO EXISTE CRISE NA CASA BRANCA

Na semana de Carnaval, ainda cheio de entusiasmo pela posse de Obama como presidente dos EUA, resolvi assistir, pela TV, ao seu primeiro discurso no congresso americano. À medida que os parlamentares e demais convidados gastavam as palmas das mãos em aplausos quase contínuos para as palavras do presidente, foi crescendo em mim um incômodo diante do que via e ouvia.

Obama reconheceu que o seu país passa por uma grave crise, mas os americanos não precisam se preocupar, pois afinal ele sabe o roteiro para tirá-los do buraco, basta aplicar seus planos e os EUA voltarão a ocupar a dianteira do mundo.

Ouvindo suas promessas, entende-se que os culpados pela crise foram os malvados conservadores que o antecederam e que governaram privilegiando os mais ricos e gananciosos empresários americanos. Então, seu governo moralizante vai dar atenção para o povo: chega de executivos com seus jatinhos, vamos taxar os mais ricos para dar educação e saúde públicas para toda a população. O Estado vai cuidar dos pobres abandonados e defender a inocente classe média das enganações dos inescrupulosos agentes financeiros.

Pensava (e ainda quero apostar) que Obama representava a possibilidade de uma nova forma de relacionamento entre governo e sociedade, entre os EUA e o mundo. O discurso que assisti vai em outra direção: velhas e mofadas receitas.

Dizer que os problemas da maioria da população são devidos à vilania de uma pequena parte podia ser moderno e revolucionário em 1789 ou, no máximo, em 1917, com a Revolução Russa. Divisão de classes, exploradores e explorados, culpados e inocentes, já não cola mais em 2009. A crise atual é de responsabilidade de toda a população, de suas crenças e expectativas. Para que servem os governos democráticos se não para demonstrar isto? Que os eleitores são responsáveis por aqueles que elegem e por acreditar em suas promessas. Onde está o país em que um presidente recomendou que todas as pessoas deveriam pensar no que poderiam fazer pelo país e não no que o governo poderia fazer por elas? Se cada cidadão, seja dos EUA ou de qualquer outro lugar do mundo, não se perguntar sobre seu papel nos impasses que vivemos, se não houver mudanças individuais, continuaremos sem poder avançar.

Outro pensamento arcaico e moribundo defendido por Obama em sua apresentação, foi o de que os EUA deveriam voltar a liderar o mundo e que o governo do país tem de defender os empregos de seus cidadãos que estariam sendo levados para outros países. Nacionalismo, a esta altura do campeonato, é no mínimo inoportuno. O presidente Lula, pelo menos neste aspecto, se mostra mais avançado e perspicaz ao combater o protecionismo como remédio para a crise.

Estamos vivendo problemas globalizados que ameaçam, antes de tudo, nosso meio ambiente. Acabou a época em que o inimigo era o outro, em que podíamos ficar perdendo tempo em guerras contra adversários imaginários. A humanidade agora está sendo chamada para resolver um problema real. Não dá mais para ficarmos bancando divisões ilusórias como ocidente/ nações islâmicas, primeiro mundo/países pobres, americanos/ norte-coreanos. Estamos todos desamparados no mundo. Seria melhor nos unirmos em nossa desgraça do que correr o risco de não darmos conta de enfrentar os desafios que a realidade nos coloca.

Além das ideias, a coreografia apresentada por Obama e sua plateia também me trouxe recordações desconfortáveis. O presidente tentava demonstrar total segurança em suas frases, nenhuma alteração, nenhum vacilo, nenhuma modulação afetiva, tudo dentro do roteiro para trazer segurança aos americanos e recuperar o orgulho nacional. Os parlamentares responderam se levantando e aplaudindo dezenas de vezes. Lembrou-me as reuniões motivacionais de final de ano das empresas nas quais cada empregado tem de aplaudir o discurso dos chefes como um macaco adestrado para demonstrar que veste a camisa da companhia que está prestes a demiti-lo. Um amigo jornalista, que também assistia ao espetáculo, fez uma associação mais preocupante: os inflamados discursos de Hitler que procuravam resgatar o orgulho e o entusiasmo de uma Alemanha derrotada e falida. Ali, do mesmo modo, se via um orador convicto que tentava trazer à tona o passado de glória e a primazia dos valores do seu povo. Espero que esta seja uma semelhança enganosa.

É um grande erro acreditar que a resposta para a crise seja promover o orgulho patriótico. Alguns dos grandes desastres na história da humanidade tiveram com pano de fundo uma união patriótica em defesa de objetivos comuns. Um indivíduo identificado a uma coletividade, a uma massa, é capaz dos piores crimes. A responsabilidade pelos atos vem sempre do exercício solitário da individualidade. O espetáculo de Obama e seus companheiros congressistas me pareceu, antes de tudo, um sinal de negação dos problemas que os EUA e o mundo atravessam.

O presidente demonstra querer rapidamente cobrir com muito dinheiro todos os buracos e furos de seu país. Bilhões para salvar os bancos e empresas em processo de falência, bilhões para recuperar a educação e saúde dos americanos, bilhões para pesquisas para se evitar os danos do aquecimento global. Basta ter dinheiro e trabalhar duro para tudo se resolver. Mas o velho modelo americano pode não funcionar mais. A praticidade matemática não convence como antes. Os americanos estão desorientados em um mundo em que um mais um não é igual a dois.

Melhor seria aprofundar o questionamento sobre a crise global. Será que ela não demanda que os americanos abandonem antigas crenças, que estejam abertos a novas ideias, a novas possibilidades de organização da realidade? Os EUA representaram, como nação, uma inovação em relação às tradicionais visões de mundo européias. Talvez, para avançar, tenham agora de abrir mão das suas receitas. Mas um processo de renovação pede que não se negue o buraco. Ao contrário, deve-se encará-lo e, a partir dele, construir uma nova realidade.

Obama deveria realmente entrar em crise, uma crise da verdade, uma crise de suas crenças, modelos e fórmulas prontas. Se haver com a incerteza, olhar para a sombra. Assim, poderá ajudar na invenção do mundo novo que a realidade atual do planeta exige.

Presidente Obama, demita seus marqueteiros, recuse o trabalho de ghost writers, rasgue seus livros de psicologia motivacional, esqueça que é o primeiro presidente americano negro, não dê bola para as comparações com Lincoln, Roosevelt e Kennedy, não acredite nas lições das crises econômicas passadas, desista do orgulho patriótico, abomine Michael Moore, afaste-se das pesquisas de opinião, fuja das estatísticas, duvide de gráficos e tabelas, dê as costas para seus índices de aprovação, não se preocupe em passar uma boa imagem e, mais importante, vivencie um pouco de solidão.

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