Um amigo que possui em seu apartamento um amplo jardim repleto de árvores frutíferas (ele mora no primeiro andar, junto ao solo, e por isto tem um grande espaço livre além da área construída do imóvel) me descreveu entusiasmado as belas flores do seu pé de maracujá que em determinadas épocas do ano enfeitam o ambiente.
O que achei curioso foi o fato de que a beleza da descrição se devia não só às características específicas das flores, como sua coloração ou formato das pétalas, mas principalmente a algo surpreendente que aparecia no relato de todo o ciclo de vida delas, desde a floração até os seus frutos: de uma planta rasteira e monocromática nascem flores de cores variadas que necessitam ser apreciadas de baixo já que estão sempre voltadas para o chão. Do meio destas delicadas formações, surgem pequenas esferas esverdeadas que vão crescendo até atingirem o tamanho volumoso e a cor amarela próprias do fruto que usamos para fazer sucos e caipirinhas.
Uma história simples, talvez corriqueira para aqueles que se dedicam à jardinagem, mas que me pareceu bonita e estranha ao mesmo tempo. É como se o enredo dos pés de maracujá não seguisse uma ordem ou uma lógica a que estou acostumado. Acredito que o encanto que senti ao ouvir meu amigo veio desta pequena surpresa. Saí de sua casa com um pensamento:como observar a natureza pode ser fascinante.
Confesso que depois fiquei um pouco contrariado por esta conclusão, afinal nunca consegui me seduzir pelos discursos a favor de uma vida harmônica com a natureza. Há muito tempo tenho uma certa aversão a ideais naturebas. De uma forma geral, ao ouvi-los, saio com o sentimento de estar escutando a defesa de uma pureza que em nada se diferencia da pregada pelas religiões tradicionais. Para os naturalistas, a civilização é encarada como um pecado. O homem verdadeiro e limpo seria aquele que vive em sintonia com o espaço natural. Como toda religião, este naturalismo vive de vender ideais ilusórios, promessas nunca alcançadas de equilíbrio, perfeição e felicidade.
Acredito que o ser humano está impregnado de modo irremediável pela civilização, pelas suas criações e transformações em seu ambiente natural. A civilização não é um defeito, um embuste que nos impede de termos contato com o mundo verdadeiro, ela é o próprio mundo humano, a nossa única realidade. Não temos a menor idéia de como é o mundo real, a natureza em si, embora ele esteja sempre presente nos rodeando. Diante desta presença constante, estamos permanentemente inventando arranjos que tentam dar conta deste universo que nos escapa.
A linguagem é a nossa grande invenção em reação a um meio misterioso. Mas cremos tanto que ela é uma representação fiel do mundo real que a tomamos como este próprio mundo em si. Não queremos saber da distância instransponível entre o universo que criamos e o universo real. E a todo momento este engano nos cobra, quando somos surpreendidos por algo que não esperamos, um desastre, um acidente, alguma coisa que não funcionou como deveria. Mas reagimos reforçando o engodo, dizendo que a nossa capacidade de representação está em contínuo processo de aprimoramento e que, em um futuro talvez nem tão distante, encontraremos uma completa justaposição com o que é real. Neste momento teremos a certeza e a segurança total da atividade humana, não seremos mais alvo de eventos inesperados, estaremos livres de acidentes, doenças, surpresas e, quem sabe, eliminaremos a morte.
Para as religiões, o mundo verdadeiro é aquele que está fora de nós, no céu ou em um nirvana qualquer. O mundo em que vivemos é apenas uma ilusão passageira. De uma forma diversa, a razão e as ciências trouxeram a esperança de encontrar o mundo real por aqui mesmo. Defenderam a crença de que a observação e a descrição rigorosa das coisas nos permitiriam atingir uma representação completa e perfeita do universo.
Mas a nossa capacidade representativa é constituída por vícios incorrigíveis. Quando nomeamos algo que percebemos, estamos fazendo uma generalização sem qualquer ressonância no mundo real. Ao dizermos, por exemplo, pedra, fazemos um recorte que tem, como princípio, a crença de que o universo é composto de coisas semelhantes que se repetem. Para que sejam comparáveis, também devemos acreditar que estas existências têm limites precisos. Ao realizar este recorte e este limite, dando um nome a uma percepção, o ser humano está fazendo existir algo que necessariamente não existe no mundo real, está criando, de fato, uma ficção. É provável que, no universo real, as coisas não possam ser generalizadas nem isoladas umas das outras, de modo que é impossível nomeá-las. Enfim, as coisas só existem enquanto invenção, obras humanas ficcionais.
Nos iludimos acreditando que o universo segue uma lógica matemática. Nele, as coisas não são unidades inteiras que podem ser somadas com um resultado preciso. No mundo real é impossível somar 1+1 porque não há nenhum número1, não existe uma unidade delimitada no tempo e no espaço. A matemática só funciona perfeitamente em nosso mundo inventado.
Diante da nossa percepção de que as unidades que nomeamos aparecem e desaparecem do mundo, inventamos um ser chamado tempo. Assim, podemos dar prova da existência das nossas criações, dizer que elas duraram um tanto definível, que nasceram e morreram em tal data, que uma coisa vem de outra, que tudo tem causa e conseqüência, que a passagem das coisas pelo mundo deixa rastros e frutos.
Construímos um mundo humano à imagem e semelhança da nossa invenção, existências que se repetem, coisas que se pretendem unidades, tudo bem delimitado. Os objetos humanos tentam acompanhar a nossa fantasia. Uma cadeira humana parece muito mais precisa que uma pedra ou uma flor percebidas na natureza. Vivemos dentro desta bolha virtual querendo nos convencer o tempo todo de que ela é real.
É assim que tento entender a necessidade de olharmos para a natureza, para a flor de maracujá, não para dominá-la, defini-la ou representá-la perfeitamente, mas para encontrarmos o enigma intransponível que o universo nos oferece. Enigma que nos mantém vivos e animados ao demandar invenção permanente.
Não precisamos temer o assombro que é o universo, devemos encará-lo sob o risco de perdermos a beleza, o encanto, a surpresa e, com tudo isto, a própria humanidade.
Se algum dia encontrássemos a fantasia impossível da completude, se nosso mundo de invenção fosse equivalente ao mundo real, não haveria lugar para o ser humano, perderíamos a nossa diferença, voltaríamos à massa amorfa e sem existência do universo. Desistiríamos de nossa condição de criadores, de ficcionistas que fazem existir marias, prédios, árvores, mitocôndrias e galáxias.
sábado, 30 de maio de 2009
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2 comentários:
já reparou como a cidade fica linda em vésperas de inverno?
Adoro a cor do céu nesta época do ano
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