terça-feira, 22 de abril de 2008

SEM CULPA

As investigações da polícia indicam que o pai de Isabella a atirou pela janela para simular uma invasão ao seu apartamento e, assim, se livrar da culpa pela morte da filha. Os laudos apontam que a menina ainda não estava morta e que a queda foi fundamental para que isto realmente ocorresse. Na hora do aperto, teria falado mais alto para o pai a possibilidade de se livrar da culpa do que a de salvar a filha. E, depois, a estratégia de defesa, a encenação, prevaleceu sobre um possível arrependimento. No passado, um pai nesta condição poderia pensar “foi um acidente, um impulso, eu amava minha filha, não tinha a intenção.” Mas o fato de ter feito isto, de ter matado a sua própria filha, mesmo de forma não pensada, já seria suficiente para que ele se torturasse em sua consciência: “Mesmo sem querer, Deus sabe que fui o responsável, não tenho como escapar, sou culpado, serei punido.” A noção de crime culposo (sem intenção), além do doloso (com intenção), era interna às consciências e não só uma distinção jurídica.

Hoje, as consciências pesadas, em crise por ter feito algo errado, estão desaparecendo. O importante não é o fato de ter cometido um crime, mas de ter uma razão que justifique tal atitude. E temos um bom argumento para tudo que fazemos, das pequenas às grandes maldades, sempre podemos nos desculpar. A própria sociedade, a ciência e a medicina fornecem uma série de boas razões: “Fiz isto porque a sociedade é injusta, só os ricos podem tudo.” “No fundo, todo mundo faz isto, por que eu não posso também?” “Meus pais foram assassinados na minha frente quando eu era criança, então, fiquei assim.” “Estava sob efeitos de drogas.” “Foi um ato impulsivo causado por um descontrole químico no meu cérebro.” No futuro talvez se diga: “Não sou culpado, sou vítima de uma determinação genética.” Se não tinha a intenção, não foi sua culpa, você só não pode se ser apanhado pela polícia, não pode deixar que encontrem provas do seu crime e que a sociedade o puna. E, assim, vamos encontrando pais que podem jogar a filha pela janela, como quem apaga as digitais, ou assaltantes comuns que queimam viva uma família dentro de um carro para não deixar evidências. E podemos entender que estas pessoas sejam, depois de seus atos, recebidas, acolhidas e compreendidas por seus familiares e advogados que tudo fazem para ajudar na camuflagem da ação criminosa.

E mesmo que a polícia me pegue, aponte provas que me incriminem, poderei me safar no julgamento. As provas nunca são absolutas, evidentes por si, inquestionáveis. Sempre dependem da interpretação do juiz, do júri, dos bons argumentos e da capacidade de sedução e empatia dos advogados. Basta ter dinheiro para ter bons advogados. Bons argumentos podem ser comprados. Enfim, se for condenado e punido, é porque não tive dinheiro para comprar uma boa desculpa. De qualquer forma, foi uma injustiça por eu ser pobre, pois, sei que sou inocente, que tinha boas razões para fazer o que fiz.

Como o que importa são os argumentos e não o ato, o delito cometido, na iminência de ser flagrado posso até me antecipar e fazer uma confissão pública dos meus deslizes, como fazem políticos americanos ou brasileiros. Mais uma vez, basta ter dinheiro para que bons conselheiros, experts em marketing pessoal ensinem qual a melhor cena a ser feita, qual roupa usar, quais emoções expressar. Explicarei as minhas razões, pedirei a compreensão. “Na época pensei errado, não via a dimensão do meu erro, agora mudei, penso diferente, me desculpem.” Pensar errado, agir impulsivamente ou mesmo se dizer arrependido são desculpas para não ser responsabilizado por algo que se fez.

No passado, era impossível escapar da culpa e da punição por um crime. Se a justiça dos homens não te apanhasse, a justiça divina certamente o faria. Os homens, a polícia, se pode enganar. Deus, onipresente, jamais. Se não for punido em vida, será punido após esta, por toda eternidade. O olho de Deus estava sempre presente dentro de nós, em nossas consciências.

Passamos de um mundo organizado a partir da autoridade divina para um mundo organizado pela razão humana. Um mundo feito de idéias, conceitos, explicações, onde todos têm as suas razões e não há motivos para que uma seja melhor do que a outra. Daí o relativismo atual, condenado pelo papa e pelo presidente Bush, que clamam pelo retorno ao passado, por uma moral absoluta como Deus, do bem e do mal claramente definidos. Não percebem que sua idéia de Deus e do bem é apenas mais uma, que também não escapam ao relativismo. Impor um conceito sobre outros é apenas autoritarismo, nunca uma orientação ética.

A irresponsabilidade pelo que se faz produz efeitos perceptíveis em nossa cultura. Se qualquer pessoa pode encontrar justificativas para descumprir a lei, cabe aos governos ficarem mais vigilantes.Todos os humanos são potencialmente criminosos, então, o controle do estado deve ser máximo. Segurança total, cada passo deve ser observado. Quem sabe uma câmera em todos os cômodos de cada apartamento não teria evitado que casos como o de Isabella viessem a ocorrer?

Se desculpar, dando uma razão, é o mesmo que se colocar como vítima de algo que não diz respeito a você. As pessoas, assim, se reconhecem como determinadas por algo externo. A responsabilidade pelo que se faz é do outro. Perde-se a autonomia, ficamos como máquinas, robôs guiados por uma força exterior. Não temos mais alguma coisa que nos individualize, que possamos dizer eu. As pessoas começam a ficar muito parecidas umas com as outras, perdem o relevo individual. E se tudo pode ser explicado, mesmo que em perspectiva, o mundo perde seu mistério, seu encanto. A vida perde a surpresa, a magia. Passamos a viver uma rotina tediosa.

Deus, para nós, sempre foi um mistério. Nunca vimos o seu rosto, nem seu nome sabemos direito. Não entendemos com clareza quais são as suas razões. Suas leis eram apresentadas por homens que se diziam seus representantes, mas estes nunca foram confiáveis, tanto que as leis variaram dependendo da época, da cultura. Mas mesmo assim, nesta imprecisão, e talvez por isto, tínhamos a convicção de que Ele estava presente, a nos olhar, a nos avaliar, a apontar nossas falhas. Diante Dele éramos sempre imperfeitos. Só após a morte, na eternidade, quando nos uníssemos a Ele, seríamos completos, plenos. Esta era a base de nossa moral interna.

A razão nos trouxe a promessa que poderíamos tudo conhecer, tudo explicar. E, assim, encontraríamos a plenitude, a perfeição, ainda em vida. Mas estamos descobrindo que um mundo feito a partir de idéias e conceitos é um mundo em círculos. Uma explicação é um jogo de palavras que não tem fim. Uma explicação leva a outra, que leva a outra e assim por diante. Não existe explicação última ou a última é sempre a penúltima. Por mais que tenhamos um bom argumento, nunca ele é definitivo, inquestionável. O relativismo, o fato de não termos uma visão de mundo completa, não nos desculpa, mas nos responsabiliza por não podermos tudo saber. Ao invés da anarquia e da perda dos valores, o relativismo pode nos trazer a responsabilidade pelo desconhecido de nossas ações.

Se a idéia de Deus perde força em nosso mundo, podemos encontrar uma orientação ética justamente na impossibilidade de tudo argumentar. Nossa imperfeição não está em termos um ser perfeito com o qual nos comparamos. Não é uma questão de sermos menos, inferiores, pecadores. Mas devido à condição de possuirmos uma falta, um buraco irreparável dentro de nós. Há algo presente em mim que não sei dizer, que me escapa, que me faz incompleto. Existe sempre um sem nome a me olhar. E como minhas ações não podem ser plenamente compreendidas, elas guardam um tanto de surpresa. Somos um mistério para nós mesmos. Por isto, podemos ter encanto por viver mesmo sem termos a perfeição para alcançar.

Normalmente, se acredita que a individualidade está no que pensamos. Mas a experiência da razão nos mostra que o reino das idéias nos é externo. Qualquer um pode pensar o que pensamos. Só nos restam, como pessoal, as nossas ações no mundo. A forma como nos apropriamos e fazemos uso das idéias, dos argumentos. A nossa verdade está mais próxima do que fazemos do que aquilo que pensamos, em se dizer eu fiz e não eu sou . E por isto somos responsáveis pelos nossos atos. Posso escapar da polícia, dos homens, mas não escapo de mim, da minha imperfeição. E sem ela, em uma vida cheia de justificativas, perco minha liberdade, a possibilidade de me reinventar a cada dia. Fico preso a uma imagem de mim, sempre me repetindo. Não me renovo e, assim, vou morrendo lentamente.

E como julgarmos uma ação como certa ou errada, uma vez que as leis são idéias e, portanto, argumentos falhos em si? Talvez, podemos falar em algo condenável quando percebermos que um ato, como o assassinato de Isabella ou o cinismo de alguns políticos, nos tira a magia pela experiência humana.

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