segunda-feira, 5 de maio de 2008

REPARAÇÃO

Terminei, na última semana, a leitura de “Reparação”, romance do escritor inglês Ian McEwan, adaptado para o cinema, recentemente, com o título “Desejo e Reparação” em português. Para os que não leram o livro ou não assistiram ao filme, segue um breve resumo: Briony, menina que sonha escrever livros, faz uma falsa acusação contra o rapaz pelo qual sua irmã mais velha está apaixonada. Esta denúncia impede que o amor entre os dois se realize. Mais tarde, já escritora e com a proximidade da morte, como última obra de sua vida, Briony escreve um livro contando o seu crime mas permitindo que, pelo menos na ficção, a irmã e o seu amado tenham um final feliz.

Podemos inicialmente considerar que o romance foi escrito como uma tentativa de Briony de se reparar da falsa denúncia que trouxe a infelicidade para a irmã e o companheiro. A reparação de um erro do passado. Uma reparação egoísta que não mudaria a tragédia real da irmã, que juiz nenhum aceitaria como punição pelo crime cometido e que serviria apenas para aliviar a culpa interna da escritora.

Mas como podemos garantir que, caso a acusação mentirosa não tivesse sido feita por Briony, sua irmã viveria uma história de amor com o rapaz injustiçado? Sabemos o quão difícil é este encontro na vida real. Muitos chegam mesmo a pensar que ele é impossível. A paixão não resiste à aproximação entre os apaixonados. Só nos livros, nos filmes, nas novelas ou, na melhor das hipóteses, em um breve período de tempo em nossas vidas, temos encontros amorosos felizes. Se nos livramos das dificuldades que nos separam, se podemos finalmente viver o nosso amor em paz, o encanto se quebra. Logo, a máscara cai, os defeitos aparecem, o sonho se desfaz. Só mesmo nos contos de fadas se é feliz depois que as bruxas morrem.

Talvez, então, a reparação da qual o romance nos fala é uma outra, anterior, mais essencial que a tentativa de se desculpar de um delito cometido. É possível que o casal da história só pudesse ter vivido seu amor na ficção. A escritora, mais que reparar um erro seu, deu à irmã, generosamente, a possibilidade de ser feliz.

A literatura e toda atividade criativa, quem sabe, tenham como função nos reparar de uma impossibilidade original. Da impossibilidade de se livrar da morte, de tudo poder conhecer, de ter alguém que nos traga a satisfação plena. Nos versos da poeta polonesa Wislawa Szymborska: “A alegria de escrever (...) Vingança de uma mão mortal.”

Diante dos desencantos da vida, podemos ficar deprimidos ou nos tornarmos céticos, cínicos. A literatura nos fornece uma outra escolha. Por nos sabermos como seres mortais (os únicos com esta consciência na natureza) temos a necessidade da invenção. Frente à folha em branco de nossas vidas, a aventura de cada um escrever a sua ficção. E, assim, podemos tentar definir o amor como a característica essencial da condição humana. Amor, como o desejo irremediável de fazer o que é nada ser alguma coisa. De existir o que não existe. Nosso drible na morte. A nomeação de algo por uma palavra ou a própria linguagem seriam, deste modo, impulsos amorosos. Por este caminho, podemos considerar o livro escrito por Briony, sua reparação, não como uma tentativa medrosa de se desculpar, mas como um gesto desesperado de amor.

3 comentários:

rosane coelho disse...

Olá, Márlio

Também li "Reparação". Encantou-me a forma que o autor emprestou à narrativa de história tão interessante. Quantas (impossíveis) reparações tornam-se essenciais à nossa sobrevivência emocional...
Quantos estragos produzimos diariamente... De muitos não somos nem conscientes. De outros carregamos o peso que nenhuma atitude posterior amenizará. Não há reparação possível, quando os equívocos que cometemos trazem prejuízos ao outro. Não se trata de culpa, mas de responsabilidade.
Quanto ao amor, também acho difícil, fora das novelas, um final feliz para o amor romântico... Esse que envolve Peter Pans e Cinderelas pela metade, buscando no outro o seu complemento. Só há uma saída para esse tal de amor: um encontrando o outro. Ambos inteiros, sem essa ficção das metades que se complementam.
Gostei de seu blog e de suas abordagens. Sempre que possível estarei por aqui.
Abraço
Rosane Coelho

Anônimo disse...

Por mais tentadora que seja essa interpretação, pois empresta dignidade a Briony e ao seu romance, tendo a enxergá-lo como um exercício de vaidade intelectual, disfarçado na magnanimidade da pretensa reparação. Creio que aí reside a força da personagem, que acaba por confirmar a si mesma.

Fernanda Silvério disse...

Gostei do seu comentário,Helena! penso que nossa demanda de amor pode vir a fazer com que romantizemos o narcisismo presente em nós ou nos outros. Foi bom ler o texto!
Fernanda Silvério