sábado, 28 de junho de 2008

REBELAR-SE

Uma questão que ouço com freqüência é sobre como se pode ser rebelde ou inovador no mundo de hoje. Tem-se a impressão de que não existe mais lugar para movimentos de vanguarda, que tudo que tinha de ser criado já o foi. Caberia à sociedade atual apenas fazer variações e novas associações entre as coisas já inventadas. Todo ato de rebeldia nos parece datado, artificial e inócuo. As novidades já chegam velhas.

Em qualquer área, seja na política, na ciência, nos comportamentos sociais ou nas artes, inovação e rebeldia significam romper com o padrão vigente e propor uma alternativa. Um movimento inovador defende que determinada verdade caducou e oferece uma nova maneira de perceber a realidade. As vanguardas surgem a partir de indivíduos ou de grupos pequenos, e são, no começo, marginalizadas e alvo de repressão. Depois, com o tempo, elas ganham adeptos e, como em uma epidemia, acabam por levar à falência a estrutura anterior, tornando o seu novo modelo preponderante até que, também, seus conceitos se tornem obsoletos e sejam substituídos.

No mundo de hoje, temos a impressão de não haver mais padrões fixos ou hegemônicos. Não existe, por exemplo, um modelo de arte que se coloque como superior e estabeleça que obras são boas ou ruins. Pode-se ser concretista, conceitualista, neocubista, dadaísta, abstracionista, naturalista. Pode-se percorrer várias escolas e não ser classificado em nenhumas delas. Os comportamentos e as verdades são relativos, não temos mais um conjunto de normas definido e seguro sobre o que é certo ou errado fazer. Se não conseguimos mais enxergar um modelo estabelecido, não podemos, então, ter movimentos de rebeldia. Não existe algo para ser derrubado. Todas as verdades são bem vindas, pois nenhuma vale mais que a outra e nenhuma vale muita coisa. Chegou ao fim a história das utopias e das revoluções. Che Guevara não bota mais medo em ninguém, o mercado acolhe e faz festa com a sua imagem.

No mundo globalizado, temos de ser práticos e contar com dados objetivos. Nada das ilusões e do blablablá do passado. Ser prático significa ter um bom emprego, conseguir ganhar o máximo de dinheiro que se puder, ter casa própria, ter planos de saúde e de aposentadoria, ter uma reserva econômica para o estudo dos filhos ou para momentos difíceis. Deve-se garantir a segurança financeira pessoal e a dos familiares. Se sobrar um pouco, pode-se ter um pouco de prazer comprando um carro bacana, fazendo uma viagem ao exterior ou adquirindo algumas peças de roupa de uma grife famosa.

A segurança e o prazer seguem a mesma condição: é preciso ter dinheiro para comprá-los. E a melhor forma de ganhar dinheiro é tendo sucesso naquilo que faço. Ter sucesso quer dizer possuir muitos clientes. O desempenho deve ser medido por critérios matemáticos objetivos. Qual a porcentagem de vendas, qual o lucro, qual o ibope que meu trabalho trouxe. Se tenho sucesso, sou um vencedor. Caso não consiga seduzir os consumidores para os meus produtos, sou um fracassado, um loser.

Como o importante na vida é assegurar o conforto econômico, tenho de me submeter às regras. Em uma empresa devo me comportar de forma adestrada, vestir a camisa, dedicar-me totalmente aos objetivos e às vendas a serem alcançados. Nada de reclamar do excesso de trabalho, dos treinamentos imbecilizantes ou do sadismo dos chefes. Nada de querer dar muitas opiniões. Qualquer dúvida se resolve com uma pesquisa de mercado. Os departamentos de inteligência encontrarão a verdade dos fatos. Uma idéia só será boa se os números mostrarem um desempenho positivo, se o mercado a acolher. E quem detém a sabedoria de interpretação dos dados, quem avalia e diz se valeu ou não e estabelece os objetivos, são os departamentos financeiros das empresas. Só os magos que lá trabalham conhecem o segredo impenetrável das fórmulas de matemática econômica.

Mesmo não entendendo o porquê dos resultados, os números não mentem e todos devem segui-los sem questioná-los. No fundo, a empresa não precisa de você. Todos são descartáveis e substituíveis. Mas se agüentar bonzinho, seu sofrimento e dedicação serão recompensados com uma gratificação no final do ano e uma festinha para comemorar os resultados com bebida free e show com uma banda famosa da Bahia. Talvez, poderá até mesmo ganhar, como prêmio, uma viagem para Buenos Aires. Mas, depois, lembre-se: você não vem de uma família rica, a empresa lhe paga o plano de saúde e de previdência privada, dá vale-transporte e vale-refeição e a oferta de trabalho não está nada boa.

A mesma lógica acima pode ser aplicada nas outras áreas da atividade humana. Advogados vencedores são aqueles com muitos clientes e com o maior número possível de bens acumulados. Pouco importa se a causa que eles defendem é justa ou não. O importante é a fama e o retorno econômico que ela traz. Médicos bem sucedidos devem conhecer medicina baseada em evidências. A experiência clínica é enganosa, deve-se confiar apenas nos resultados estatísticos de pesquisas científicas. E não se pode questionar estes resultados, mesmo que eles venham de testes financiados pela indústria farmacêutica, em condições, na maioria das vezes, muito distantes do dia-a-dia dos consultórios. Aqui, também, a matemática não mente. E, além do mais, recebe-se uma boa ajuda dos laboratórios. Eles, talvez, convidem você para dar palestras pelo país e, assim, poderá ficar conhecido e ter mais clientes. Se for dedicado na prescrição, ganhará como brinde uma viagem para um congresso no exterior. Terá de assistir a algumas palestras entediantes que repetirão à exaustão os mesmos gráficos e tabelas que não lhe são nem um pouco compreensíveis. De qualquer forma, você já decorou alguns nomes de termos estatísticos, dos dogmas que dizem se determinada droga é superior ao placebo, para uma conversa rápida com o colega ao lado. Mas, depois de marcar presença e fazer cara de sério, poderá ter alguma satisfação fugindo para o outlet mais perto. E, à noite, com sorte, assistirá, depois do jantar oferecido pelo laboratório, a um musical da Broadway ou a uma apresentação do Cirque du Soleil. Se der tempo, conseguirá ainda ir ver a Mona Lisa ou fazer o roteiro de O Código Da Vinci. Tudo isto pra contar pros amigos e colegas que não têm o mesmo prestígio que os laboratórios lhe concedem. E os pacientes também ficam alegres em receber remédios de última geração que custam uma fortuna, em serem submetidos a modernos e dispendiosos exames médicos. Pra que abrir mão disto? Pense no que poderá perder se for mais crítico.

Um governo para ser considerado bom deve promover o crescimento econômico de seu país. Sucesso é ter uma alta taxa de crescimento do PIB. Todos querem ser a China, a superpotência do futuro, que cresce mais de 10% ao ano. Não é relevante se o país é autoritário ou não. Suas cidades cosmopolitas, com grandiosas torres de escritórios e as legiões de novos milionários são irrefutáveis. Seu regime político rígido deveria até ser copiado por países pobres, como uma forma de colocar ordem na bagunça e trazer investimentos.

Em um mundo onde o que vale é o poder de consumo, milhões de pessoas abandonam seus países de origem em busca de uma melhor condição econômica. Terminam como imigrantes ilegais submetidos a várias formas de humilhação e acusados de todos os problemas que os países ricos enfrentam.

A área cultural, que outrora foi a fonte de vários movimentos de renovação, também se curva às demandas do mercado. Nas artes plásticas, avalia-se um artista pelo valor de venda de suas obras. Fulano de tal está em alta se um quadro seu foi arrematado por milhões no último leilão da Sotheby’s. Obras de arte têm a mesma utilidade de barras de ouro. São investimentos e reservas econômicas. Se estão em exposição, são como uma paisagem qualquer. Servem de entretenimento para as massas que procuram se ocupar com alguma coisa quando não estão batalhando pelo seu dinheirinho. Como passear no shopping novo. Na literatura, os autores mais importantes são aqueles que escrevem best sellers. Alguém merece ser um imortal da Academia de Letras apenas porque ninguém vende mais livros do que ele.

Um ator de sucesso deve estar em uma novela que dê muito ibope. Pouco importa se o personagem e as falas são idiotas. No começo do mês tenho a segurança de um salário gordo. Ainda sou chamado para comerciais e eventos e aumento a minha conta no banco. Vendo a minha imagem para ser usada em uma propaganda de sopas para emagrecer e cobro caro para ser a estrela da festa de debutante da filha de um rico empresário do interior. Faço uma concessão ao mercado para juntar dinheiro para comprar meu apartamento e depois, com segurança, vou poder me dedicar aos trabalhos nos quais realmente acredito e que me dão prazer. Mas, com o tempo, vou adiando o meu plano, pois ainda sou jovem, tenho de aproveitar meus apelos físicos, o fato de ainda ter beleza. Vou precisar de um apartamento maior, de uma reserva mais polpuda. Se largar agora pode ser que não consiga mais ir ao restaurante da moda, posso ficar desprestigiado, as revistas não vão mais falar de mim, vou perder oportunidades. E depois, ninguém dá valor à arte, artista é marginalizado, no fundo as pessoas só querem consumir porcaria. E, com os anos, chego à conclusão de que estou velho demais para bancar um projeto meu, de querer recuperar ilusões. Tenho de pensar que vou me aposentar logo, que não existem papéis para atores idosos. E velho gasta muito com saúde, melhor tirar e garantir o máximo agora para não faltar depois.

Pode ser legítima a escolha de dedicar a vida à busca de uma promessa nunca alcançada de encontrar a segurança econômica. É um caminho que, no passado, representou uma renovação em relação ao mundo estruturado a partir da autoridade religiosa. Seu problema é se apresentar como algo definitivo, como o fim da história das inovações. Como se não houvesse outra possibilidade, como se toda rebeldia, toda vanguarda fosse neutra e banal, apenas mais uma mercadoria.

O mercado pode não ter um rosto definido contra o qual nos rebelarmos. Mas suas verdades estão impregnadas em nós. Talvez, ser rebelde no mundo de hoje seja não se convencer da verdade da obrigação de uma vida prática. De se alcançar a segurança econômica para se ter a coragem de arriscar uma invenção. Não concordar com aqueles que dizem: Não tem jeito, o mundo é assim, é bobagem querer pensar diferente, aceite as regras. Ser revolucionário em 2008 significa duvidar das certezas matemáticas e enfrentar o medo das perdas. Em suportar o ridículo que é bancar uma utopia, uma ilusão.

Mas nossa rebeldia tem de valer. Não pelos critérios de sucesso econômico e de público, mas por nos trazer a experiência de felicidade. Se desanimamos no meio do caminho, se recuamos, se nos tornamos infelizes, solitários ou queixosos, nossa invenção não irá contaminar os outros. E, assim, a impossibilidade de nos renovarmos, de fazermos a história andar, permanece. Para fazer valer uma rebeldia temos de estar tomados pela necessidade do novo.

O novo não é o produto mais novo, mais moderno, os novos lançamentos que o mercado continuamente produz. O novo, também, não é o contrário, não é a recuperação de modelos antigos e não é encontrado através de fórmulas prontas. Não é a pobreza e não é o fundamentalismo religioso. Nem o neomarxismo, o neodarwinismo ou neoliberalismo. Não é muito menos sermos novos punks, novos hippies ou novos baianos. O novo é inventado e só é reconhecido como tal posteriormente. Vem sem garantias e assusta. Necessitamos de novos corajosos.

3 comentários:

flávia coelho disse...

Hum, então sou rebelde, que bom. Mais uma coisa, diante desse quadro tão bem desenhado por você, não é de espantar que o roubo, a trapaça, a fraude, a desonestidade e outras coisas do tipo sejam tão disseminadas por aqui. Né?

Anônimo disse...

Curiosidade: você que analisa tanto as situações, pessoas e suas psiquês, consegue me explicar o que leva alguém formado em teorias sobre o comportamento humano ser tão fechado, caladão e pouco amistoso?

Márlio Vilela Nunes disse...

Posso tentar responder melhor se me enviar um e-mail: marliovn@hotmail.com