quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A BOLHA ESPECULATIVA DE DAMIEN HIRST

Há muito me pergunto sobre como uma obra de arte pode ser provocadora nesta época em que tudo é automaticamente transformado em mercadoria. No mundo especulativo em que vivemos, as obras não têm valor em si, não são avaliadas por suas qualidades intrínsecas e particulares, mas de acordo com a cotação genérica das grifes que ostentam no mercado. Se compra e se admira Picassos e não a Les Demoiselles d’Avignon de Picasso. A única informação necessária para se avaliar um trabalho é saber se o artista que o produziu está em alta ou em baixa nas bolsas de valores artísticos.

Na semana passada, finalmente assisti a algo que me pareceu original e perturbador no universo das artes: a venda de 223 trabalhos recentes do artista britânico Damien Hirst na famosa casa de leilões Sotheby’s de Londres

A originalidade não está tanto no fato de o artista ter vendido suas obras diretamente em um leilão, invertendo o tradicional modelo no qual trabalhos recentes devem primeiramente ser comercializados em galerias.

O que me parece inusitado foi ter-se vendido obras de arte por valores exorbitantes em um esquema no qual o comprador leva somente a obra, ficando a arte com o artista.

As dezenas de trabalhos comercializados no leilão foram feitas em poucos meses, em escala industrial, por 120 assistentes do artista. Eram cópias genéricas ou caricaturas grosseiras de obras anteriores de Hirst, principalmente aquelas de maior impacto popular, como animais mortos mergulhados em tanques de formol. Foram nomeadas com títulos cafonas e supostamente poéticos como “Anatomia de um anjo” ou “O sonho destruído”.

Os novos milionários da Rússia e da Ásia, cegos pelo impulso de fazer um investimento ao mesmo tempo rentável e cosmopolita, trataram de correr e gastar tubos de dinheiro para adquirir um produto da grife Damien Hirst, o artista sensação que por muitas revistas que adoram fazer listas é considerado o número um das artes plásticas em todo o planeta.

O próprio artista colaborou na criação de uma bolha especulativa em torno dos seus trabalhos. Pediu para que amigos dessem lances altíssimos no primeiro dia de leilão, criando, desta maneira, um furor competitivo que fez com que as obras fossem arrematadas por valores superiores aos esperados inicialmente.

O leilão me lembrou a conhecida história do rei que queria a mais bela roupa do mundo e contratou pretensos famosos costureiros que lhe fizeram um traje que não existia. Assim como o rei do conto, os compradores de Hirst pagaram para ficar nus.

Os novos donos dos trabalhos do artista britânico, com o tempo, vão descobrir que as obras, permeadas por uma promessa de eternidade conferida pelo formol dos tanques ou pelo mármore de Carrara de uma escultura, são efêmeras e não valem um tostão.

Com Marcel Duchamp e seus ready-made descobrimos que qualquer coisa pode ser um objeto de arte. Mas o mercado entendeu esta afirmação como se a arte fosse qualquer coisa. O leilão de Hirst talvez nos esclareça melhor, mostrando que o fato de poder não quer dizer que todas as coisas sejam arte. Nem todas as rodas de bicicleta ou urinóis são obras de arte. Somente aqueles que o artista escolhe e apresenta ao olhar alheio que neste lugar os reconhece. As coisas, enquanto categorias gerais, são mercadorias, produtos de utilidade e valor definido que, deste modo, podem ser comercializadas. As obras de arte, mesmo quando são objetos retirados do cotidiano, têm valor e utilidade que não podem ser precisados. Elas possuem características que as fazem singulares, não podendo ser classificadas a partir de generalidades do tipo “isto é um Matisse”. Um mesmo artista pode produzir arte e mercadorias.

Damien Hirst acaba de vender suas mercadorias. E elas podem ter um destino igual ao dos aparelhos eletrodomésticos que rapidamente ficam fora de moda: o lixo.

Por uma fantástica coincidência ou por uma brilhante intuição do momento, o leilão do britânico ocorreu na semana em que as bolsas de valores desmoronaram em todo o mundo. Do mesmo modo que os compradores da grife Hirst um dia descobrirão, os investidores foram confrontados com o fato de que seus investimentos não têm o menor lastro na realidade. Em pânico, eles agora buscam um pilar de segurança para poder colocar seu dinheiro. E, mais uma vez, o Estado, o grande pai regulador, é chamado para pôr ordem na bagunça e cobrir os furos deixados. Como um adolescente irresponsável que faz um monte de dívidas para comprar drogas e depois, diante da ameaça dos traficantes, apela para que o pai pague a conta. Com esta solução paterna, os especuladores, assim como o adolescente viciado, continuarão a se comportar como irresponsáveis. O governo americano, do mesmo modo que muitos pais, não quer saber do buraco, pretende ignorá-lo com um bom maço de dólares por cima. Desta maneira, pode-se aliviar a crise por um período curto, mas o problema não é tratado e persiste.

Não parece que Damien Hirst tenha mentido ou enganado os investidores que compraram suas obras. Ele divulgou abertamente em que condições os trabalhos foram feitos. Não fez nenhum esforço para esconder o circo especulativo em torno do seu leilão. É como se dissesse “ se é isto que o mercado quer, é isto que eu vou oferecer”.

De forma original, o artista não fez uma denúncia em seus trabalhos do mercantilismo da arte nos tempos atuais. Não realizou trabalhos que mostram a exploração dos excluídos do boom econômico ou que promovam a natureza contra a degradação causada pelo capitalismo. Ao contrário, ele seguiu a própria corrente do mercado e lançou mão das mesmas ferramentas e dos mesmos vícios para fazer uma grande paródia, uma grande tirada de sarro.

O mercado diz que artistas, no fundo, também só querem saber de ganhar seu dinheirinho, então é exatamente isto o que foi feito. Só que foram vendidos objetos de grife por milhões de libras, mas a arte ficou com o artista, em sua performance. Hirst, desta forma, questiona a própria necessidade de um objeto palpável para que se tenha uma obra de arte. A arte talvez esteja mais na atitude, na ação do artista ao criá-la e das pessoas em interpretá-la. Por fim, foi como se Hirst dissesse: vendi o que se podia e a arte não pode ser vendida.

As obras de arte, com as vanguardas modernistas e pós-modernistas, sobreviveram às tentativas acadêmicas ou universitárias de explicá-las e enquadrá-las. O leilão de Hirst pode ser um novo movimento de rebeldia que as impeça de ser captadas e anuladas pela lógica do mercado.

Em vez da denúncia, do medo, do pânico ou da depressão, Damien Hirst oferece uma ironia criativa diante das bolhas que, ao estourar, revelam que a realidade não tem um lastro seguro.

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