quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A BOLHA ESPECULATIVA DE DAMIEN HIRST

Há muito me pergunto sobre como uma obra de arte pode ser provocadora nesta época em que tudo é automaticamente transformado em mercadoria. No mundo especulativo em que vivemos, as obras não têm valor em si, não são avaliadas por suas qualidades intrínsecas e particulares, mas de acordo com a cotação genérica das grifes que ostentam no mercado. Se compra e se admira Picassos e não a Les Demoiselles d’Avignon de Picasso. A única informação necessária para se avaliar um trabalho é saber se o artista que o produziu está em alta ou em baixa nas bolsas de valores artísticos.

Na semana passada, finalmente assisti a algo que me pareceu original e perturbador no universo das artes: a venda de 223 trabalhos recentes do artista britânico Damien Hirst na famosa casa de leilões Sotheby’s de Londres

A originalidade não está tanto no fato de o artista ter vendido suas obras diretamente em um leilão, invertendo o tradicional modelo no qual trabalhos recentes devem primeiramente ser comercializados em galerias.

O que me parece inusitado foi ter-se vendido obras de arte por valores exorbitantes em um esquema no qual o comprador leva somente a obra, ficando a arte com o artista.

As dezenas de trabalhos comercializados no leilão foram feitas em poucos meses, em escala industrial, por 120 assistentes do artista. Eram cópias genéricas ou caricaturas grosseiras de obras anteriores de Hirst, principalmente aquelas de maior impacto popular, como animais mortos mergulhados em tanques de formol. Foram nomeadas com títulos cafonas e supostamente poéticos como “Anatomia de um anjo” ou “O sonho destruído”.

Os novos milionários da Rússia e da Ásia, cegos pelo impulso de fazer um investimento ao mesmo tempo rentável e cosmopolita, trataram de correr e gastar tubos de dinheiro para adquirir um produto da grife Damien Hirst, o artista sensação que por muitas revistas que adoram fazer listas é considerado o número um das artes plásticas em todo o planeta.

O próprio artista colaborou na criação de uma bolha especulativa em torno dos seus trabalhos. Pediu para que amigos dessem lances altíssimos no primeiro dia de leilão, criando, desta maneira, um furor competitivo que fez com que as obras fossem arrematadas por valores superiores aos esperados inicialmente.

O leilão me lembrou a conhecida história do rei que queria a mais bela roupa do mundo e contratou pretensos famosos costureiros que lhe fizeram um traje que não existia. Assim como o rei do conto, os compradores de Hirst pagaram para ficar nus.

Os novos donos dos trabalhos do artista britânico, com o tempo, vão descobrir que as obras, permeadas por uma promessa de eternidade conferida pelo formol dos tanques ou pelo mármore de Carrara de uma escultura, são efêmeras e não valem um tostão.

Com Marcel Duchamp e seus ready-made descobrimos que qualquer coisa pode ser um objeto de arte. Mas o mercado entendeu esta afirmação como se a arte fosse qualquer coisa. O leilão de Hirst talvez nos esclareça melhor, mostrando que o fato de poder não quer dizer que todas as coisas sejam arte. Nem todas as rodas de bicicleta ou urinóis são obras de arte. Somente aqueles que o artista escolhe e apresenta ao olhar alheio que neste lugar os reconhece. As coisas, enquanto categorias gerais, são mercadorias, produtos de utilidade e valor definido que, deste modo, podem ser comercializadas. As obras de arte, mesmo quando são objetos retirados do cotidiano, têm valor e utilidade que não podem ser precisados. Elas possuem características que as fazem singulares, não podendo ser classificadas a partir de generalidades do tipo “isto é um Matisse”. Um mesmo artista pode produzir arte e mercadorias.

Damien Hirst acaba de vender suas mercadorias. E elas podem ter um destino igual ao dos aparelhos eletrodomésticos que rapidamente ficam fora de moda: o lixo.

Por uma fantástica coincidência ou por uma brilhante intuição do momento, o leilão do britânico ocorreu na semana em que as bolsas de valores desmoronaram em todo o mundo. Do mesmo modo que os compradores da grife Hirst um dia descobrirão, os investidores foram confrontados com o fato de que seus investimentos não têm o menor lastro na realidade. Em pânico, eles agora buscam um pilar de segurança para poder colocar seu dinheiro. E, mais uma vez, o Estado, o grande pai regulador, é chamado para pôr ordem na bagunça e cobrir os furos deixados. Como um adolescente irresponsável que faz um monte de dívidas para comprar drogas e depois, diante da ameaça dos traficantes, apela para que o pai pague a conta. Com esta solução paterna, os especuladores, assim como o adolescente viciado, continuarão a se comportar como irresponsáveis. O governo americano, do mesmo modo que muitos pais, não quer saber do buraco, pretende ignorá-lo com um bom maço de dólares por cima. Desta maneira, pode-se aliviar a crise por um período curto, mas o problema não é tratado e persiste.

Não parece que Damien Hirst tenha mentido ou enganado os investidores que compraram suas obras. Ele divulgou abertamente em que condições os trabalhos foram feitos. Não fez nenhum esforço para esconder o circo especulativo em torno do seu leilão. É como se dissesse “ se é isto que o mercado quer, é isto que eu vou oferecer”.

De forma original, o artista não fez uma denúncia em seus trabalhos do mercantilismo da arte nos tempos atuais. Não realizou trabalhos que mostram a exploração dos excluídos do boom econômico ou que promovam a natureza contra a degradação causada pelo capitalismo. Ao contrário, ele seguiu a própria corrente do mercado e lançou mão das mesmas ferramentas e dos mesmos vícios para fazer uma grande paródia, uma grande tirada de sarro.

O mercado diz que artistas, no fundo, também só querem saber de ganhar seu dinheirinho, então é exatamente isto o que foi feito. Só que foram vendidos objetos de grife por milhões de libras, mas a arte ficou com o artista, em sua performance. Hirst, desta forma, questiona a própria necessidade de um objeto palpável para que se tenha uma obra de arte. A arte talvez esteja mais na atitude, na ação do artista ao criá-la e das pessoas em interpretá-la. Por fim, foi como se Hirst dissesse: vendi o que se podia e a arte não pode ser vendida.

As obras de arte, com as vanguardas modernistas e pós-modernistas, sobreviveram às tentativas acadêmicas ou universitárias de explicá-las e enquadrá-las. O leilão de Hirst pode ser um novo movimento de rebeldia que as impeça de ser captadas e anuladas pela lógica do mercado.

Em vez da denúncia, do medo, do pânico ou da depressão, Damien Hirst oferece uma ironia criativa diante das bolhas que, ao estourar, revelam que a realidade não tem um lastro seguro.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

NA NATUREZA SELVAGEM OU A LEI DO DESEJO

Muitas pessoas resolvem fazer análise para descobrir o que realmente querem fazer na vida. Esta dúvida pode surgir tanto na juventude, no momento em que se deve escolher uma profissão, ou mais tarde, quando a pessoa descobre-se insatisfeita com a sua atual ocupação.

A partir de determinada época, geralmente depois dos 30 anos, passamos a nos perguntar se teríamos sido mais felizes caso tivéssemos seguido um outro caminho. Diante desta questão, muitos consideram que abriram mão daquilo que na verdade poderia ter lhes trazido a realização para se dedicar a um trabalho escolhido ou mesmo imposto por condições externas. Abdicaram do seu desejo pessoal para cumprir a vontade dos pais, atender uma necessidade econômica ou pelo medo de arriscar algo diferente. Sentem-se frustrados, acreditam que talvez seja tarde para tentar novamente e esperam que, quem sabe, os filhos poderão se realizar por eles. Podem também ficar desanimados e, com o tempo, tornar-se cínicos: a vida é assim mesmo, felicidade não existe, vivemos só para ganhar um dinheirinho para pagar as contas, quem é muito sonhador acaba se dando mal.

Quem assistiu ao filme Na Natureza Selvagem pode ter saído com a impressão descrita acima. Para aqueles que ainda não viram o filme e que preferem fazê-lo sem nada saber do enredo, recomendo que interrompam a leitura deste texto e a retomem depois de ir ao cinema, alugar o DVD ou baixar pela internet.

No filme, um jovem, após terminar a faculdade, abandona a carreira, família e bens para realizar o sonho de viver autenticamente integrado à natureza, sem as opressões que a civilização nos impõe. Para isto empreende uma viagem pelo interior dos EUA com o objetivo final de chegar ao Alasca.

Durante sua jornada, ele conhece várias pessoas que o acolhem e de alguma forma o ajudam na sua caminhada rumo ao norte. Estas pessoas, por sua vez, levam uma vida tediosa e, após conhecerem o rapaz, desenvolvem por ele um forte laço afetivo que lhes devolve a animação. Este jovem, cheio de desejo, contamina os outros na sua busca pela felicidade. Até mesmo sua família, diante da sua ausência, modifica a forma de se relacionar, tornando-se mais unida e tolerante.

Entretanto, o rapaz, após conquistar a vida selvagem no Alasca com que tanto sonhara, não sustenta o seu desejo e se dá mal. No final, sem condições de manter a sobrevivência sozinho, se arrepende, retoma o nome de família que havia renegado e tenta retornar para casa. Mas aí já é tarde, o rigor do inverno o aprisiona, e ele acaba morrendo solitário.

Uma mãe zelosa que assista ao filme poderá dizer: está vendo, pra que querer sair pelo mundo com maluquices na cabeça? O melhor lugar sempre é a segurança e o conforto da casa dos pais.

Percebemos que além de saber o que queremos na vida, qual é o nosso Alasca, o mais difícil é fazer valer a nossa escolha. Talvez, seja melhor deixar esta decisão pra lá, deixar que a vida, ou seja, que os outros nos apontem uma direção. Depois, pelo menos, poderemos ter uma desculpa, ou um culpado, por não termos encontrado satisfação.

Mas podemos tirar algumas lições de Na Natureza Selvagem que não sejam a confirmação da ameaça de que ter desejos é tolo e perigoso.

O Alasca era um ideal. A sua realidade dura era muito distante dos sonhos imaginados pelo jovem desbravador. Esta descoberta vale para qualquer coisa que elegemos como objeto de satisfação, seja uma profissão, um estilo de vida ou um produto de consumo. Toda as vezes em que as conquistamos, descobrimos que existe um espaço entre elas e o que idealizávamos. Em vez de nos frustrarmos e concluir que a felicidade não existe, poderíamos pensar que esta insatisfação permanente é a nossa condição de liberdade, a forma de manter nossas vidas animadas e de encontrar singularidade no mundo.

Se chegamos à conclusão de que determinado objeto é a nossa condição de felicidade, anulamos nossa vida em uma servidão na busca do ser pretendido. Ficamos viciados e o fim de um vício é a destruição do dependente. A sociedade classifica alguns vícios como patológicos, como o causado pelo álcool, mas qualquer coisa que consideremos a resposta definitiva de satisfação tem o mesmo efeito deletério. O problema do protagonista de Na Natureza Selvagem foi ter acreditado que o Alasca seria a sua felicidade.

O jovem pensava que sem a opressão do desejo dos pais, da sociedade e da civilização, encontraria na sua essência selvagem o seu verdadeiro querer. Trata-se de uma convicção antiga, mas muito presente na nossa cultura, de que a civilização castra nossa felicidade, de que devemos aboli-la para nos realizar. Podemos ver os sinais desta crença tanto naqueles que hoje defendem a volta de uma vida mais natural e que vêem como pecado os recursos tecnológicos inventados pela humanidade, como naqueles que cumprem esta expectativa, destruindo o planeta em nome do desenvolvimento econômico. Capitalistas e ecologistas, assim como Bush e Bin Laden, precisam uns dos outros para seguir com as suas verdades. Deveriam perceber que o risco está em eleger uma fórmula, seja ela natureba ou consumista, como resposta para o bem-estar humano. Que tanto o dinheiro quanto a natureza são ideais ilusórios.

É possível que a parte mais importante de Na Natureza Selvagem não seja o seu final, mas sim a aventura empreendida pelo personagem na busca da felicidade. Enquanto não havia alcançado o seu ideal, ele promoveu um encontro feliz que fez vivificar pessoas acomodadas em uma rotina sem alegrias. O seu desejo despertou o desejo alheio. Talvez estas pessoas, após descobrirem o final melancólico do rapaz, pudessem novamente mergulhar no tédio cotidiano.

Muitas vezes percebemos que pessoas ao nosso redor, como familiares, em determinada fase de suas vidas perdem o encanto e o entusiasmo, passando apenas a “tocar a vida”. Com o tempo, desenvolvem um processo de decadência que termina em deterioração física e social. Normalmente tentamos devolver-lhes o ânimo através de conselhos e cobranças. Algumas são diagnosticadas com depressão e tratadas com antidepressivos. Mas tanto bons conselhos quanto substâncias químicas não são suficientes para trazer uma mudança que as revitalize de forma consistente.

O que de melhor poderíamos fazer por estas pessoas é emprestar-lhes o nosso exemplo. Assim como o jovem do filme, poderíamos contaminá-las com o nosso exemplo de entusiasmo. Mas para isto temos que bancar o nosso desejo, sustentá-lo, fazê-lo valer. E qual a maneira de conseguirmos isto?

Talvez se aprendêssemos que o importante não é descobrir o que queremos, como acreditava o personagem do filme, mas que continuemos sempre a querer. Que a resposta para o que desejo seja apenas desejar.

A aposta no desejo nos possibilita seguir em frente. Se, ao contrário, colocamos nossas fichas em um objeto exterior, estaremos sempre nos deparando com a frustração, a insatisfação, a queixa e o desânimo. Mas guiados por um desejo que não tem um objeto final, podemos nos satisfazer com as coisas que vamos conquistando na vida.

Na lógica do sempre desejar, os objetos nunca são entidades estanques, prontas, acabadas. Elas demandam a nossa intervenção, a nossa interpretação, a nossa invenção. Importa mais o que você vai fazer com aquilo que escolheu do que aquilo que escolheu.

A sociedade e os pais não podem, desta maneira, ser vistos como castradores de nosso verdadeiro desejo. O que recebemos deles cabe a nós renovar. Não precisamos abandonar a civilização. Ao contrário, podemos nos utilizar dela como instrumento de nossa realização.

Se escolhemos determinada profissão, seja ela qual for, só teremos sucesso se soubermos que teremos sempre que reinventá-la a cada dia. E não desanimar com as dificuldades que vamos encontrando pelo caminho. Por saber que as coisas não são o ideal que fazemos delas, podemos ler nesta falha um convite para a nossa permanente criatividade. Deixamos de nos perceber como pecadores, como errados, como inferiores para nos entender apenas como desejantes.

Ânimo, assim como as palavras alma e psique, tem como origem a expressão sopro de vida. Desejar pode ser o nosso sopro de vida.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

LINHA DE PASSE

Linha de Passe, novo filme de Walter Salles e Daniela Thomas, estréia neste fim de semana. Fui assisti-lo com a cabeça tomada por um imaginário que havia sido formado a partir da leitura de algumas críticas publicadas na imprensa antes do lançamento do filme. Seria uma história escrita e dirigida por pessoas ricas, bem criadas e cheias de culpa, que apresentaria os pobres da periferia como vítimas inocentes. Uma resenha até afirmava haver no filme a defesa do direito dos menos favorecidos de se tornarem bandidos diante da exploração e arrogância das elites dominantes. Enfim, um obra de denúncia social, mais uma visão do mundo cão e injusto que seria o nosso Brasil. Tudo isto em um formato cafona e pretensamente poético.

Pouco a pouco, à medida que as cenas iam se seguindo, minhas expectativas foram caindo. Saí do filme com uma sensação de desmonte, de ter levado um golpe forte. Tive a impressão de ter sido confrontado com uma verdade que resistia em ver, em saber. Uma verdade já conhecida, mas coberta por uma vontade arduamente defendida de ignorá-la. A força da quebra que sofri talvez seja esta: Linha de Passe apresenta um realismo seco, sem concessões, sem máscaras, sem maquiagem, sem ilusões, sem esperanças, sem cor, sem brilho.

Não é o realismo a que estamos acostumados no cinema e que as críticas que li indicavam. Uma realidade que não conheço, que não pertence ao meu mundo, que me é exterior. Não é mostrar a pobreza, a violência, a segregação e a discriminação que as pessoas da periferia sofrem enquanto que os brancos, ricos e cosmopolitas das zonas sul e oeste desfrutam de uma bolha de felicidade em um ambiente de conto de fadas. O incômodo, ao contrário, veio ao perceber que o filme escancara uma realidade que me é interna, que sempre esteve comigo e que procurava inutilmente colocar debaixo do tapete.

Logo no começo, aparece uma São Paulo suja, cheia de viadutos e outras obras públicas mal acabas. As paisagens, o povo, as roupas, o céu, tudo é feio. O filme tem uma luz fosca e amarelada, que deixa todas as coisas e pessoas com uma cor parda, encardida. Pensei: mais uma produção que gosta de mostrar o lado degradante do país, como se fosse só isto: a pobreza. Por que não mostrar que São Paulo tem um lado rico, prédios modernos, verdadeiras ilhas do primeiro mundo? Mas o filme não se restringe apenas à zona leste. Ele mostra ruas dos Jardins e da região da Berrini. Passei a reconhecer, então, que minha vergonha da cidade está presente mesmo nos bairros ricos. As manchas marrons estão por todo lado. Por mais que se façam operações públicas de embelezamento ou de maquiagem, temos sempre os mendigos pelas calçadas cheias de lixo, os ônibus arcaicos e barulhentos lotados de trabalhadores suados, o mau gosto das construções neoclássicas, os carros blindados e com vidros escurecidos, os seguranças truculentos com seus ternos pretos e desalinhados.

O filme segue contando a história de uma família da periferia. Filhos sem pai, a mãe empregada doméstica grávida de mais um filho de pai desconhecido, sufoco econômico, total ausência de apoio governamental, sonhos frustrados. Pronto, agora o Waltinho vai mostrar seu lado humano e cristão e nos explicar como toda esta segregação e falta de amparo conduzem os pobres do país para apenas três opções: ser jogador de futebol, evangélico ou bandido. Outra expectativa que não se cumpre. O filme não é uma aula de sociologia sobre as causas de nossas diferenças econômicas. Os pobres não se revoltam e partem para o crime e a violência contra seus agressores. Os ricos não são malvados arrogantes. Ao contrário, eles também parecem, de alguma forma, miseráveis e desprotegidos. Não vemos nem vilões nem bonzinhos inocentes na tela. Não dá para reclamar ou culpar nada e ninguém pelos fracassos que se sucedem na vida dos personagens.

Quebrar expectativas a todo momento. Esta parece ser a linha que conduz o filme. Tanto para os personagens quanto para quem o assiste. Não recebemos nenhuma esperança de redenção . Ao final, saímos sem explicações que aliviem a nossa angústia, sem uma causa definitiva, sem um inimigo para eliminar e sem a expectativa de governantes que nos tragam o bem-estar. Não podemos apontar como culpados os governos ineficazes, a exploração social, a divisão de classes ou a falta de oportunidades para os jovens do nosso país. A frustração é ainda mais profunda.

De forma dura, Linha de Passe revela que o destino não torce por nós, que não há garantia de que algo de bom nos espera, nem um milagre para cair do céu. Não existe um outro oculto que cuide para que encontremos a felicidade. E esta desgraça não é exclusiva dos pobres, dos ricos ou dos brasileiros. Ela está presente em todos os seres humanos, ela é universal.

Se tirássemos as nossas ilusões, aquelas que nos fazem acreditar que somos privilegiados, de que escapamos, pelas máscaras que vestimos, do nosso desamparo no mundo, poderíamos perceber que somos iguais aos motoboys, aos bandidos, aos evangélicos, aos pobres, aos que não têm pai.

Em obras anteriores, Walter Salles e Daniela Thomas colocaram os protagonistas na estrada em busca de um pai perdido. Em Linha de Passe, nos convencem definitivamente de que a procura é inútil. A humanidade está, ou talvez sempre foi, órfã de pai. E, em nosso momento histórico atual, ainda não sabemos bem como nos virar, como continuar andando sem a crença em um outro que vele pela nossa segurança e satisfação, que nos diga o que é certo ou errado fazer.

Linha de Passe não traz respostas claras para este conflito. Mas, curiosamente, a falta de chão que tive ao assisti-lo, não me pareceu, depois de um tempo, uma experiência ruim. O filme, com o seu realismo duro, com a sua desesperança, com a sua falta de brilho, é estranhamente belo. Mesmo São Paulo, sem qualquer maquiagem, está bonita como nunca a vi antes no cinema ou na televisão. E as pessoas, ainda que com todas as suas carências, são imensamente dignas.

Mas o que mais me intrigou foi o desejo que senti quando o filme terminou. A orfandade e a solidão que compartilhava com os personagens me trouxeram um único impulso. Queria poder abraçá-los fortemente e lhes dizer: puta merda meus irmãos!

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

WHO WANTS TO BE A MILLIONAIRE?

A grande promessa da globalização é transformar todas as pessoas que vivem no planeta Terra em consumidores. Os governos são eleitos e cobrados tendo em vista a sua dedicação a este compromisso. E não se trata de uma questão, como até pouco tempo se pensava, de garantir aos cidadãos de cada país as condições mínimas de sobrevivência. Os eleitores demandam de seus governantes que eles encontrem a receita para fazer com que todos sejam ricos. Que qualquer pessoa possa comprar tudo aquilo que quiser. Que não existam barreiras entre mim e o produto pelo qual anseio.

Ser rico não depende mais da vontade divina, de uma determinação que não se pode questionar. O Estado é que ficou encarregado do papel de um pai que nos dará a felicidade monetária. E, ao contrário de Deus, os governantes podem ser cobrados por isto. Podem ser trocados caso não dêem para cada pessoa as condições necessárias para que ela seja uma vencedora, uma abonada.

Tampouco importa a habilidade individual para conseguir ganhar dinheiro. Se não reúno as condições para alcançar o sucesso econômico, é porque tenho uma carência que o Estado deve suprir. Por exemplo, se sou preguiçoso ou pouco criativo, devo ter acesso a um tratamento psiquiátrico para que possa ser ativo e ter idéias brilhantes.

A cada novo levantamento das revistas especializadas em fortunas, aumenta o número de milionários no mundo. Mas enquanto forem alguns e não todos, nossa sociedade será vista como injusta e discriminatória. Por que uns podem mais que outros? A festa tem de ser para todos. Uma democracia de consumo, este é o ideal igualitário dos nossos tempos.

Mas podemos fazer um esforço criativo e imaginar como seria um mundo em que cada um pudesse comprar tudo aquilo que quisesse. Que toda vez que fosse lançado o mais novo modelo de telefone da Apple, o último esportivo da BMW ou a mais bela casa no litoral, bastaria ir até o revendedor mais próximo e buscar o seu exemplar. Que pudéssemos ir a qualquer restaurante e comer o que desejássemos. Viajar e ficar no melhor hotel que encontrássemos. É provável que viver em um mundo assim não tenha a menor graça.

Mesmo que ainda não tenhamos alcançado o maravilhoso planeta do quero logo tenho, a sua perspectiva, aliada ao sonho atual de satisfação e realização pessoal que acompanha a aquisição de produtos, já antecipa alguns efeitos deste mundo aguardado.

Viajar, por exemplo, virou um dos maiores desejos de consumo. Assim, para atender a demanda de uma massa de viajantes, todos os lugares do planeta se converteram em bens de consumo ou mercadorias. A cada dia a legião de turistas loucos para comprar uma paisagem aumenta.

Quem experimentou tirar férias recentemente pôde testemunhar que lugares antes envoltos em um imaginário romântico, como a Itália, se converteram em shopping centers abarrotados de pessoas. Filas enormes para se entrar em qualquer museu ou restaurante, atendentes estressados, engarrafamentos gigantescos, flashes para todo lado que se olhe. Os turistas de massa têm esta característica. Querem ver tudo. Estão sempre apressados e, munidos de seus celulares com câmeras fotográficas ou filmadoras, parecem ansiar por apenas uma coisa: armazenar o máximo possível de imagens. Não estão nem um pouco interessados na contemplação das obras, na experiência de viver os lugares em que se encontram. Mona Lisa é apenas uma paisagem que alguém disse ser importante ver e captar em sua câmera. A entrada da China no mercado de turismo, com seus potenciais centenas de milhões de viajantes, só deve agravar este cenário.

Mesmo os destinos menos visados não estão livres de escapar à massificação. Todos os cantos do planeta foram descobertos e vasculhados, fotografados ou filmados. Não é preciso nem mais sair de casa. Com um computador posso vislumbrar qualquer parte do planeta. Com o desenvolvimento de tecnologias que permitem programas como o Google Earth, poderemos em breve viajar, via satélite, para os lugares mais distantes da Terra e conhecê-los em detalhes.

As diversas culturas que habitam o nosso mundo perderam a sua áurea exótica e misteriosa. Parece que não existem mais culturas autênticas. Quando visitados, sejam moradores da Índia, da Mongólia ou de tribos africanas, todos parecem estar representando a si mesmos. Suas roupas são como fantasias, seus costumes, como uma encenação para os olhos e lentes. Qualquer ponto turístico do planeta ganhou este aspecto de simulacro, de representação. Praga, Veneza, Macau, tudo virou Las Vegas.

E não é uma questão de ir em busca de outras paisagens, desbravar o espaço, vislumbrar outros planetas. Marte, por exemplo, nas recentes imagens enviadas por naves e robôs exploradores, se mostra um lugar sem muita variação, monocromático e com perspectivas previsíveis. É que hoje, com os recursos da computação gráfica, é possível inventar as paisagens mais fantásticas e grandiosas.

A relação entre as pessoas também está perdendo o seu mistério. Nossos ídolos são acompanhados e exibidos imperdoavelmente, dia após dia, em revistas e sites de fofoca. Parecem até alguém da família. Programas Big Brothers e webcams espalhados pelos quatro cantos do planeta colocam ao alcance de qualquer tela a intimidade de terceiros. A divisão entre vida pública e privada deixou de existir. E o acesso às telas está cada vez fácil. Com os novos telefones celulares temos uma tela à mão em os todos os lugares em que estivermos. Podemos nos comunicar com qualquer um, em qualquer país, a qualquer momento. Assim, as pessoas nos soam, a cada dia, mais parecidas, mais banais e sem encanto.

A informação, que antes demandava esforço para ser alcançada (era necessário ler muito, ter dinheiro para isto e poder freqüentar universidades e bibliotecas), hoje está disponível facilmente via internet. Faz-se uma pesquisa em um piscar de olhos. Posso ler o livro que quiser, posso baixar e assistir a qualquer filme, ouvir qualquer música. Na globalização, no mundo em que tudo tem de ser um produto comprável, lugares, pessoas e toda produção cultural viraram qualquer coisa. E qualquer coisa nos aborrece, nos entedia.

Parece que estamos dedicando a nossa vida, governos sendo eleitos, guerras sendo realizadas, estamos matando e morrendo para alcançar algo que facilmente poderíamos perceber como uma promessa falsa de felicidade.

E o que devemos fazer? Colocar restrições ao consumo, defender a volta aos valores espirituais? Defender que as catedrais são mais belas que os shopping centers?

Não acredito que soluções do passado possam ser um bom remédio para lidar com os impasses que enfrentamos. A religião, se decaiu como forma organizadora do mundo, é porque não tem mais as condições necessárias para isto. Voltar ao passado só retardaria o surgimento de soluções eficazes. Depois, se proibimos ou limitamos o consumo, se o colocamos como um pecado, estamos mantendo a crença que consumir é igual a ser feliz. A velha história de que devemos abrir mão de uma cota de felicidade para podermos viver em harmonia. Mas este arranjo não dura muito tempo. As pessoas, na sociedade atual, querem, com todo o direito, ter acesso às felicidades prometidas.

Podemos arriscar deixar as pessoas livres para consumir o que quiserem. Logo, como uma criança empanturrada de chocolate, vamos ter que nos haver com a nossa frustração. Neste momento, sem Deus a quem nos queixar, teremos que nos responsabilizar pelo nosso desejo incompleto.

Acredito que não precisaremos chegar ao planeta devastado ecologicamente, com seus habitantes vivendo em naves espaciais, todos gordos e inativos, cercados por máquinas que atendam a todas as suas vontades, como assistimos recentemente no filme Wall-E. É possível que nosso desejo sempre em aberto nos salve antes.

Porque podemos consumir, ter tudo aquilo que se pode comprar, mas, ainda assim, não vamos ser amados como gostaríamos e, mais cedo ou mais tarde, vamos morrer. Nunca saberemos a fórmula infalível para conquistar o amor do outro e para escapar da morte. E este desconhecido, este impossível, este mistério permanente, evita que possamos transformar tudo e todos em mercadoria, em objetos que se pode adquirir.

E, para a surpresa dos aspirantes a milionários, descobre-se que o amor, esta eternidade passageira que engana a morte, pode ser encontrado quando abandonamos a matemática de perdas e ganhos.

No fim, depois da epidemia consumista e de toda frustração decorrente, talvez nos reste apenas o olhar de alguém ao lado.