quarta-feira, 8 de abril de 2009

UM BECKETT PARA O SÉCULO XXI

Li impulsivamente, emendando um no outro, os três últimos livros do escritor inglês Ian McEwan publicados no Brasil: Reparação, Sábado e Na Praia.

A escrita de McEwan segue um formato bem tradicional se considerarmos os padrões introduzidos na literatura pelas vanguardas do século passado. Seu texto tem, de uma forma geral, uma narrativa linear, os enredos são simples e seguem uma lógica facilmente acompanhável, os personagens são bem caracterizados, o vocabulário é o usado pelas pessoas comuns e o escritor não costuma lançar mão de recursos estilísticos modernosos como neologismos ou inversões e corrupções das normas gramaticais.

Entretanto, no final da cada livro do escritor, tive a sensação de ter passado por uma experiência extremamente contemporânea. A evidência mais perceptível deste sentimento foi a surpresa pelas novas questões que as obras me provocaram.

Em Reparação, a arte, a ficção ou a invenção como única forma de se reparar uma impossibilidade humana original. Em Sábado, a revelação de que os lugares, divisões e hierarquias sociais são ilusões e que, embaixo destas fantasias, existe um vazio que nos convida à solidariedade. Por fim, em Na Praia, um cruel descaramento do esforço que fazemos para afastar a felicidade de nós, para depois, em um momento que nos pareça distante o suficiente para não poder mais resgatá-la, dizer: podia ter sido feliz e não fui. A eterna queixa de homens e mulheres.

Ser moderno no último século significava romper com as tradições e padrões estabelecidos. Mas de uma maneira tão radical que não visava apenas, como nos séculos anteriores, trocar uma escola por outra, um modelo estabelecido por outro. Tratou-se de quebrar qualquer possibilidade normativa, de se criar um padrão que fosse hegemônico sobre os demais. O que se questionou foi a própria validade das regras, dos formatos.Vale qualquer forma e nenhuma é, a princípio, melhor que outra.

O fim de leis gerais de como bem escrever, de um modelo que fosse certo ou errado, melhor ou pior, teve, como efeito esperado, mostrar que a linguagem é um eterno mal-entendido, que o mundo não tem um sentido definido e preciso, que jamais podemos ser totalmente compreendidos por quem nos ouve. Os escritores do século 20 aniquilaram o que restava da imagem narcisista humana.

Samuel Beckett talvez tenha sido o mais expressivo autor desta época. Beckett, com sua revolucionária obra, fez o absurdo da experiência humana entrar definitivamente para a cultura.

Mas o que fazer agora que sabemos que Godot não vem mesmo? Não vem porque não existe. Então, neste desamparo, qual caminho seguir em um universo sem um sentido final, em que a perfeição é apenas uma ilusão impossível, em que não se pode esperar alguém que nos ame incondicionalmente, alguém que nos reconheça por inteiro, em que não há limites rígidos, em que as verdades são passageiras e em que não existem modelos e receitas seguras?

Vamos ficar somente queixando da perfeição perdida? Concluiremos que o mundo, por não ser perfeito, é uma porcaria e que o ser humano é uma droga? Permaneceremos denunciando que os afetos são mentirosos e que devemos ter uma relação cínica e prática com a vida? Seguiremos lamentando o fato da humanidade ter sido enganada por séculos? Iremos pedir a cabeça dos que nos venderam o engodo, sejam eles religiosos, governantes, milionários ou celebridades?

Embora escondida sob inúmeras fantasias, no fundo, já sabíamos desta impossibilidade. Mas agora esta realidade não pode mais ser camuflada. O exercício humano da razão, os séculos de questionamentos, inexoravelmente nos conduziu para que as ilusões fossem caindo uma a uma. Não sobrou nem a garantia em Deus e nem na própria razão entendida como um conhecimento que nos traria a certeza e o controle do mundo.

No século 21, precisamos dar uma passo além da denúncia do vazio humano. Não necessitamos de criadores que façam o mesmo que Beckett e seus contemporâneos, mas que sigam a partir de onde eles chegaram.

Não vejo como inovadora, por exemplo, a criação de alguns escritores brasileiros que, em uma tentativa de se contrapor à tradicional literatura regionalista do país, adotam Franz Kafka como um modelo de vanguardismo e passam a escrever histórias bizarras, soturnas, com enredos chocantes, não lineares e sem um entendimento definido. Para o mundo em que vivemos, Kafka está no mesmo lugar que Cervantes, Flaubert ou Balzac:grandes autores do passado. Precisamos de escritores que nos possibilitem novos olhares, até para que possamos manter sempre vivos, através de novas interpretações, os autores dos períodos anteriores.

Acho datado tentar mostrar, em pleno 2009, que a linguagem não comunica. Recentemente li uma entrevista com um diretor e autor teatral considerado inovador na qual ele diz que procura expor, em suas obras, os limites e a precariedade da linguagem. Já sabemos disto há mais de 100 anos. Trata-se de uma novidade velha.

Talvez um escritor moderno no século 21 seja alguém que não negue a experiência do absurdo revelada pelas vanguardas passadas. Mas em vez de ficar paralisado ou se lamentando, ele se pergunta e daí, o que podemos fazer a partir da falta de sentido, da ausência de comunicação, de uma linguagem que é pura fantasia.

Ian McEwan é um autor que consigo acreditar neste lugar. Não se preocupa com formatos revolucionários, mas usa a escrita regular como um ato de desespero. Não quer encontrar um sentido final para o mundo, mas lança mão de sentidos possíveis que, assim como um encanto ou magia, tentam, nem que seja por uma ilusão de tempo, enganar uma impossibilidade original. Suas delicadas, longas e detalhadas descrições das pessoas, dos objetos, das paisagens e dos acontecimentos demonstram amor à experiência humana mesmo sendo ela imperfeita. Amor às ferramentas que os seres humanos recorrem para enfrentar a sua tragédia: a linguagem, as palavras, a ficção. Uma ficção que sabe da sua precariedade, do seu impossível, mas que não recua e não desiste de exercer a sua humanidade.

Se a comunicação é sempre falha, se o mal-entendido está constantemente presente, se não há uma autoridade infalível que nos garanta um sentido preciso para as palavras, não quer dizer que é melhor nós pararmos de falar uns com os outros.

McEwan faz uma obra que pode ser compartilhada com quem o lê. É uma escrita solidária e portanto afetiva, amorosa. Talvez porque ele não se preocupe em passar uma mensagem, em explicar algo, em expor ideias e conceitos. Suas descrições se parecem mais com testemunhos: um testemunho sincero daquilo que escapa de poder ser bem dito, bem representado O mais importante em seu trabalho está além da sua aparência. Através de uma linguagem comum, o escritor não vende um modelo, mas oferece um exemplo da experiência de se tentar enfrentar os limites da condição humana. Um exemplo que inclui o leitor que, assim, é convidado, ao seu jeito, à invenção.

Ao contrário de McEwan, aqueles que optam por fazer textos de formatos herméticos tentando mostrar as insuficiências da comunicação acabam provocando o mesmo efeito que se quer combater: a crença na possibilidade de uma representação perfeita. Os trabalhos nebulosos, que não podem ser compartilhados minimamente, são como delírios individuais que não têm nenhum objetivo atual que não seja o exibicionismo: olhem como minhas loucuras e minhas viagens são bacanas. São trabalhos arrogantes e ególatras que provocam, em seus leitores, apenas um justo cansaço.

Quem já sabe da impossibilidade da representação não tem medo da linguagem simples, dos sentidos e afetos precários.

Neste caminho, a partir do vazio e do desamparo escancarados por Samuel Beckett, Ian McEwan avança produzindo um efeito frágil e delicado de beleza.

Uma beleza moderna que não é necessariamente fruto do que se vislumbra em uma obra, mas que surge da experiência de contato com esta criação. É possível que a novidade (e mesmo a vitalidade) de um trabalho artístico não esteja na sua forma. Depois do modernismo e pós-modernismo não importa mais o modelo, pode-se usar qualquer imagem.

Com a sociedade do espetáculo, levamos ao extremo a capacidade de organizar o mundo pela forma, pela representação. A necessidade de inovação agora exige se experimentar em uma obra algo que está além da aparência, além do sentido.

Romper com a idolatria, com o império da imagem, talvez seja um dos grandes desafios deste nosso tempo. No século 21 as exigências para a mulher de César são maiores: não basta ela ser e nem muito menos parecer honesta.

4 comentários:

Ilma disse...

Prezado Marlio,
Não o conhecia , mas lendo um pequeno texto seu, esclareceu para mim algumas dúvidas sempre existentes (mas que nunca vamos atrás para desvendar) sobre as diferenças dos conceitos de psicanálise, psicoterapia e psiquiatria, nesse texto vc diagnosticou cada uma com simplicidade e propriedade, além de uma sessão grátis sobre a responsabilidade que só nós temos de nossas dores e como só cabe a nós a criatividade para sair delas.
Gostaria de conhecer seus livros
Um grande abraço dessa sua nova fã.

Márlio Vilela Nunes disse...

Oi Ilma,
Obrigado pela visita e pelo comentário. Não tenho livros publicados. Quem sabe, com incentivos iguais ao seu, um dia consiga publicar um. Grande Abraço

Ilma disse...

Prezado Márlio,
Obrigada pela gentileza da resposta, em relação ao post onde descreve com tanta veracidade as sensações percebidas na leitura dos livros, chega a ser confortante ver o que sentimos também foi em épocas anteriores e ainda hoje,senti uma intensa leitura de minhas próprias sensações, essa percepção do vazio coletivo e não dito, do afastamento da felicidade, enfim, todo post é uma grande verdade que todos sentimos, conscientes ou não acho que chegou a hora de encararmos isso, não sei como, mas ter a consciencia já é um passo, não? Adorei.
Grande abraço

Márlio Vilela Nunes disse...

Prezada Ilma,
concordo com você, saber é um passo que faz muita diferença. Obrigado mais uma vez.
Abraço e volte sempre