Já tinha ouvido falar da força do texto da peça Dúvida, de John Patrick Shanley, e do impacto que a sua montagem causou nos EUA. Recentemente tive a oportunidade de assistir, em DVD, à adaptação feita pelo próprio autor para o cinema.
Para quem não teve a chance de ver a peça ou o filme, segue um resumo: na década de 60 do século passado, em uma época de liberalização dos costumes, a Igreja Católica passa por um processo de modernização de suas práticas. Em um tradicional colégio católico americano, um freira defensora dos velhos valores é obrigada a conviver com um novo padre liberal. Pouco a pouco a resoluta freira é tomada pela desconfiança de que as novas ideias do sacerdote, na verdade, servem para esconder e, quem sabe, justificar um comportamento perverso. O padre estaria usando sua posição para seduzir um jovem aluno negro discriminado pelos colegas brancos. Buscando provas, a religiosa começa a investigar a vida do padre e a vigiá-lo com a ajuda de outras freiras. Qualquer indício, como um simples carinho do sacerdote no menino, é considerado uma evidência de pedofilia. Mesmo sem uma prova definitiva, a irmã consegue o afastamento do padre de sua escola. O interessante é que quando o filme termina não sabemos quem estava certo. Não há um julgamento sobre quem estava com a razão, quem na realidade era vilão ou bonzinho. Saímos desamparados de uma lição de moral. Assim como a freira, ficamos perdidos na angústia da dúvida se o padre cometeu ou não o crime.
Se pensarmos que a liberdade de costumes não se deu apenas dentro da Igreja Católica, mas que atingiu todas as esferas sociais, podemos generalizar a incerteza que o filme levanta. Um mundo mais livre seria também um mundo mais perigoso. As pessoas de bem podem, em um meio libertário, estar à mercê de enganadores e aproveitadores que têm como objetivo exclusivo prejudicar os outros.
Assim como a religiosa do filme, a sociedade tenta encontrar mecanismos de vigilância para que possamos pegar os incapazes de conviver em liberdade com a boca na botija. A medicina, apoiada em suposições biológicas, tenta definir quais seriam as pessoas propensas a um comportamento antissocial. Se pudermos prevenir e detectá-las antes que cometam suas vilanias, melhor ainda. Não é de se estranhar que nas listas de livros mais vendidos encontremos guias que serviriam para ajudar as pessoas a reconhecer um psicopata à sua volta.
Uma sociedade livre deve ser também uma sociedade de controle. Câmaras em todos os prédios, casas e ruas. Fiscalização em todas as atividade humanas, qualquer brecha cria a oportunidade para o bandido. Ameaças de multas e cadeia para segurar os impulsos criminosos que, afinal de contas, podem estar em qualquer um que tiver uma liberdade sem vigilância.
Pais devem monitorar seus filhos para que não sejam vítimas de pervertidos que abusam da inocência infantil. Esposas devem acompanhar cada passo de seus maridos para que não sejam trocadas por uma biscate qualquer. Namorados e namoradas devem investigar a vida pregressa de seus companheiros, acompanhar diariamente seus Orkuts e seguidores no Twitter. O inimigo pode morar ao lado.
Pior, o inimigo pode estar dentro de nós. Contra a nossa vontade, podemos ser acometidos por alterações em nossa química cerebral que nos fariam ter atos indesejáveis. Por esta visão, o ser humano é por natureza perigoso. Se não formos bem controlados em nossos impulsos vamos acabar nos matando ou matando os outros. Então, chamamos o Estado para nos vigiar e nos punir, somos todos potencialmente irresponsáveis, potencialmente criminosos. Invertemos o valor de que todos são inocentes até que se prove o contrário: agora, a princípio, todos são culpados. E que venham leis secas, restrições quase totais ao uso de cigarro e outras limitações da liberdade individual baseadas em dados estatísticos e científicos que supostamente seriam a revelação da verdade das coisas (só nos esquecemos de que os cientistas e estatísticos, assim como os representantes do governo encarregados de nos controlar e nos bem proteger, são tão humanos quanto qualquer um e também estão sujeitos aos mesmos vícios e descontroles).
Se as pessoas gastam seus esforços, economias e votos para apoiar a vigilância geral é porque devem encontrar alguma satisfação aí. Os intelectuais, escritores e outros artistas que no passado previram o mundo Big Brother talvez ficassem surpreendidos ao constatar que esta realidade não precisou ser imposta autoritariamente, mas que contou com a escolha e a participação dos vigiados.
É que, se por um lado, a paranóia é sufocante e aprisionadora, por outro ela sustenta a crença de que se somos protegidos de nossos inimigos somos também mais amados. Nosso protetor cuida de nós, ele nos ama. E, se conseguirmos eliminar tudo aquilo que nos atrapalha, seremos plenos e encontraremos a felicidade. A paranóia é uma forma de manter um ideal de felicidade e por isto é tão aceita em nossa sociedade.
Mas a promessa de proteção total é uma falsa promessa de amor e de felicidade, é um engodo. É impossível controlar o universo, é impossível termos segurança e certeza em nossas ações, é impossível alguém que nos proteja totalmente, que nos complete, que feche todos os nossos buracos e brechas, que nos traga a felicidade plena.
E se desejamos saber se alguém está nos enganando basta ver se esta pessoa promete dar o que é impossível.
Enganador e aproveitador é quem promete um mundo seguro e sem vilões. Charlatão é aquele que diz que sabe os meios para se encontrar paz, tranquilidade e segurança plena, a cura de todos os nossos males, de nosso mal-estar permanente. É curioso que livros que ensinam como detectar os psicopatas sejam eles próprios, em suas falsas receitas e expectativas, um exemplo de psicopatia.
A nossa expectativa de completude, de segurança total, de amor perfeito é que cria os vilões à nossa volta. Dizemos que abusaram de nossa boa fé, da liberdade que demos a eles para depois sermos trapaceados. Mas nós criamos os inimigos esperando deles algo que não podem dar: nós quisemos ser enganados, ficar no me engana que eu gosto. Assim, quando a felicidade não vem, podemos culpar os outros ou mesmo as nossas próprias vilanias e fraquezas por não termos encontrados a satisfação esperada. Daqui a pouco estaremos culpando os governos, os cientistas, os gurus espirituais e os escritores de auto-ajuda pelas promessas não cumpridas. Serão os vilões do futuro, como os economistas e financistas são os malfeitores do momento, após venderem a felicidade na riqueza ao alcance de todos.
Elegemos um culpado para não sabermos do impossível da satisfação total. Assim, sustentamos a crença de que basta eliminarmos a causa de nosso infortúnio para sermos felizes. Só que este processo não tem fim, acabamos em uma dúvida permanente.
Diante da dúvida ficamos ansiosos por encontrar uma resposta definitiva e, como ela é impossível, ficamos apenas sofrendo de ansiedade. Uma dúvida nunca pode ser resolvida, uma dúvida gera outra em um processo sem fim. Se dizemos que a psicopatia está no cérebro de um pessoa e que este cérebro é determinado por uma genética, teríamos também de encontrar o que determina a genética de alguém e o que determina o que determina a genética e assim por diante. Por isto este caminho sempre acaba em Deus, a causa última. Uma ciência que visa encontrar as causas das coisas acaba por ser uma boa companheira para as religiões. Não é de se estranhar que muitas seitas modernas se utilizem de conceitos científicos para justificar as suas crenças.
Nunca poderemos determinar a causa final de nenhum comportamento humano. Uma atitude questionadora diante do mundo não vem de quem está na dúvida: quem tem dúvida sempre tem a esperança de uma resposta, acredita em uma imagem definitiva e em algum momento dá um jeito de acreditar que a encontrou. Da dúvida chega ao dogma.
A única maneira de resolvermos a dúvida é eliminarmos aquilo que nos traz a dúvida. Por isto muitas pessoas, para não ter de lidar com a dúvida de ser amado, preferem não viver o amor. Assim como em um relacionamento a busca por querer entender o outro acaba em briga e no fim da relação, nossa busca por querer entender e controlar o mundo pode nos levar ao aniquilamento. Se interpretarmos a liberdade que vivemos hoje como um risco de sermos alvo de vilões, se formos tomados pela angústia desta dúvida, pode ser que acabemos por destruir a nós mesmos. Se a humanidade quiser ficar livre de todos os seus males, é possível que a saída seja a sua própria eliminação. Ao contrário, para estar vivo, para existir, é preciso fazer bom uso do mal-estar. Espero que seja esta a escolha que prevaleça.
Quem opta por ser em vez de não ser deve saber que a condição desta escolha é ter a certeza do impossível da completude: só se pode ser enquanto invenção permanente e sem fim. Deve-se passar da dúvida para a certeza do impossível.
Deste modo, podemos apostar que a liberdade faz um homem criativo e não criminoso e que, em vez da ilusão de um Estado protetor, de um outro enganador que promete a completude e a segurança, se pode acreditar em alguém mais próximo que ensina com o seu amor que, mesmo sendo imperfeita, uma pessoa pode gostar de si. Em vez de vilões que impedem a felicidade plena, alguém que ajuda o outro a ser feliz usando aquilo que tem. Em vez de causas, soluções e em vez de dúvida, invenção.
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
Maravilhoso como sempre.
Penso que, desde que nascemos, esse "vazio existencial", essa incompletude caminhará conosco por toda a vida.
Mauro.
É a nossa força estranha. Mauro, obrigado pelo comentário.
A beleza da vida está exatamente nas "imperfeições" humanas, a dúvida é um elemento de motivação como qualquer outro sentimento, o texto do Shanley é maravilhoso ele o leva ao ápice da tomada de decisão na linha tênue entre a culpa e a satisfação...bravo
Postar um comentário