domingo, 27 de setembro de 2009

ANTICRISTO E O SALVADOR

O novo filme de Lars Von Trier, Anticristo, tem despertado comentários diversos entre as pessoas que conheço. Alguns não gostaram nem um pouco, acharam o trabalho do diretor pretensioso, cafona, pouco original ou mesmo infantil em sua tentativa de chocar e chamar a atenção. Outros dizem que gostaram, embora não consigam definir bem o porquê: talvez a bela e onírica sequência inicial, quem sabe a atuação dos atores, a fotografia...

Um amigo foi além e me disse que não sabe falar se gostou ou não, mas que, de alguma forma, foi tocado pelo filme, que algum desconforto foi provocado apesar de não poder nomeá-lo ou explicá-lo. Concordo com este amigo, saí do cinema sem poder comentar nada a não ser pela negação: não é um filme de terror, não é uma obra que tenta renovar a linguagem cinematográfica, não se parece muito com os trabalhos anteriores do diretor. Sobre o que era então, sobre meu entendimento a respeito do que tinha assistido, não conseguia dizer palavra.

E a incerteza em relação ao filme não me abandonou com o passar dos dias. Ao contrário, o enigma me perseguiu e foi aumentando diante das opiniões variadas dos amigos. E enigmas demandam algum tipo de resposta, algum tipo de invenção, mesmo que precária.

Então, relembrando Anticristo, pensei em como achei chatos os diálogos nos quais o terapeuta tenta curar a própria mulher traumatizada pela morte acidental do filho pequeno. Em nome do seu amor pela esposa, ele se dispõe a salvá-la da dor por meio de modorrentas técnicas psicológicas após o fracasso do tratamento farmacológico.

O curioso é que embora pareçam estereotipados, os recursos terapêuticos empregados pelo zeloso marido correspondem aos que hoje são prevalentes nos congressos, na literatura científica e nos consultórios dos profissionais da área de saúde mental.

As técnicas de psicoterapia mais recomendadas e utilizadas são aquelas que acreditam que o paciente pode superar seu trauma e se livrar de pensamentos irracionais por meio de uma “desensibilização” pelo confronto direto com aquilo que lhe desperta o medo imaginário.

Deste modo, o marido pede que sua mulher cite as coisas que lhe provocam medo. Depois, que coloque cada coisa em uma ordem de intensidade, para no fim eleger um jardim conhecido da família como aquilo que mais lhe causa pavor. O casal parte, então, para o tal jardim (significativamente chamado de Éden) que se mostra na realidade uma área de montanhas isoladas e cobertas por uma floresta fechada, um lugar de natureza bruta.

Após ter contato com o ambiente que lhe despertava o medo, para a surpresa do próprio marido-terapeuta, a paciente tem uma melhora súbita e completa dos traumas. O sucesso fácil e inesperado do tratamento é o início de um mundo caótico que se revela diante do racional psicólogo. A natureza selvagem se volta contra ele e toma conta do corpo de sua mulher que, para o horror de feministas e politicamente corretos, se mostra totalmente descontrolada, incapaz de respeitar qualquer regra psicológica ou biológica, qualquer bom senso lógico ou civilizado, qualquer limite moral ou sentimento amoroso. Diante da devastação da mulher, de seu indomável impulso destruidor, a única saída é assassiná-la. De salvador, o terapeuta passa a assassino.

Talvez seja este um dos pontos de incômodo que o filme escancara: como a vida daqueles que buscam salvar terceiros pode ser ingrata. Como é triste a sina de pais e mães, maridos e esposas, padres, pastores, médicos, psicólogos e psicoterapeutas de diversas correntes, confrontados com filhos e companheiros que insistem em não seguir os bons conselhos, com fiéis que permanecem com a sua vida pecaminosa e desgarrada de Deus, com pacientes que, por mais bem orientados, continuam a ter comportamentos que sabidamente lhes fazem mal.

Que maldade é esta que escapa a qualquer tentativa de correção por mais bem intencionada que seja, que faz até pessoas bem criadas e que receberam as melhores oportunidades na vida terem atitudes destrutivas? Que mal é este que persiste na humanidade que mesmo após séculos de uso da razão, com todo o desenvolvimento filosófico, científico e tecnológico, ainda é palco dos piores e indignos crimes?

Em Anticristo se diz que a natureza (e talvez a mulher) é a igreja de Satanás. Poderíamos pensar que a Civilização (e os homens), então, é a casa de Deus. Durante séculos os homens tentaram civilizar, dominar, controlar ou domar o mundo natural e feminino em nome de Deus e em nome da razão. Quanto mais tradicional e autoritária é uma sociedade, mais distante esta deve estar da natureza selvagem, mais escondidas e apagadas devem estar as suas representantes do sexo feminino.

Mas por maior que fosse a camuflagem, por maior que fosse a tentativa de controle, a natureza indomável deu um jeito de se fazer presente. No Ocidente, diante do rigor religioso cristão: bruxas, diante da rigidez moral endossada por uma neurologia recém criada: histéricas, diante do dever da felicidade química ao alcance de qualquer um que possa comprá-la: dependentes de drogas, depressivos crônicos e refratários aos tratamentos e os famosos borderlines.

No passado, como solução, queimava-se as bruxas, trancafiava-se e isolava-se as histéricas. E hoje, quando o mal, assim como a demanda por felicidade, se espalhou por toda a humanidade, não respeitando sequer a boa divisão entre homens e mulheres? Para nos livrarmos do mal, se seguirmos a receita antiga, deveríamos matar todos os seres humanos. Um assassinato inútil: como no final de Anticristo, a natureza seguirá o seu rumo indiferente ao nosso desespero.

Em vez de tentar eliminar ou camuflar, talvez possamos encarar e fazer um novo uso do mal que insiste em estar presente na humanidade. O primeiro passo é desistirmos do papel de salvadores.

Quando ficamos diante de alguém que quer nos salvar, nos corrigir, ficamos cobrados a seguir e alcançar um ideal. A pessoa que quer salvar parece portar o conhecimento necessário para livrar a outra de todos os seus sofrimentos, de toda a sua angústia, de todo o seu desajuste. O salvador promete ter o caminho para a felicidade.

Entretanto, um ideal de felicidade só pode se manter se nunca for alcançado. Quando se chega à terra prometida, logo se descobre nela os defeitos, a distância entre a imagem que se tinha e a coisa real. Neste momento, se o que vendeu a receita não souber renovar a promessa, o devoto se sente enganado e da adoração passa ao ódio por aquele lhe fez cair no conto do vigário. Diante de um mestre, o discípulo se sente sempre aquém, rebaixado, roubado de sua possibilidade de ser feliz. O mestre promete, mas não dá. O salvador é percebido, com o passar do tempo, como um tirano, um dominador, alguém que nos escravizou e nos explorou fazendo–nos acreditar em uma ilusão. Deve, portanto, ser destruído.

Além da seu extermínio físico, deve-se acabar com as crenças que ele portava e difundia. Nesta disputa, o mestre é morto ou mata o discípulo rebelde. Se o revoltoso vencer a batalha, passar ele a ser o novo senhor da verdade, até uma nova rebelião.

Quem sabe não seja melhor abandonarmos os lugares de mestre ou discípulos invejosos do mestre, olharmos para a incerteza permanente do mundo e assumirmos apenas o lugar de inventores. Orientarmos-nos não por uma promessa segura e final de completude, mas por uma natureza que jamais poderá ser capturada. Irmos além da separação entre bem e mal, entre civilização e caos e das divisões ilusórias entre homens e mulheres.

A natureza e a mulher não são o lugar do mal, no sentido daquilo que se opõe ao bem. Elas são o indício daquilo que é real: a verdade está na natureza, na mulher. Quando não queremos saber disto, vendamos nossos olhos querendo acreditar que as nossas construções de mundo são o próprio mundo em si, que nossa representação do universo é o próprio universo, que a nossa imagem de uma mulher é a mulher.

A civilização é o lugar da mentira, do engano, da ficção. Se tentamos fazer a ferro e fogo nossas criações serem o mundo, nos dedicamos a um esforço inútil. Se ficamos parados e iludidos com nossas mentiras, a verdade uma hora ou outra cai sobre as nossas cabeças. Aí nos sentimos frustrados, deprimidos, despontados, achando que o universo é uma droga, que os seres humanos são vilões incorrigíveis e que nossa existência é uma porcaria.

Para a sorte dos seres humanos, a natureza feminina não deixou que permanecêssemos acomodados e tranquilos em nossas respostas. Ela se fez presente em homens e mulheres que não recuaram diante da verdade que lhes aparecia. Pessoas que souberam seguir em frente mesmo que para isto tivessem de abrir mão do reconhecimento ou de serem amados. Para alguns, o compromisso com a verdade falou mais alto do que salvar a própria imagem. Estes seres apaixonados tiveram a coragem de não acreditar nas “verdades” de seus tempos e propor novas soluções e novos arranjos.

Talvez a verdade que a natureza incontrolável nos revela seja esta: é impossível dominar o universo, é impossível entender e explicar o mundo, não existe sentido final, resposta última. A mulher não é o complemento do homem, nenhuma pessoa pode completar a outra. Uma verdade que escapa às nossas tentativas de dizê-la e que por isto está constantemente nos animando, nos convidando à vida e à invenção da realidade, dos outros e de nós mesmos. A civilização só se mantém por ser um projeto inacabado, o caos não a destrói, mas a orienta.

Se tirarmos as nossas vendas imaginárias, poderemos saber que já estamos no Jardim do Éden, mas sozinhos. Não há anticristo de quem reclamar, não há salvador por quem esperar. Adão e Eva terão de se virar em um paraíso sem Deus, sem serpente e no qual o fruto proibido é na verdade uma maçã qualquer.

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