sexta-feira, 5 de setembro de 2008

LINHA DE PASSE

Linha de Passe, novo filme de Walter Salles e Daniela Thomas, estréia neste fim de semana. Fui assisti-lo com a cabeça tomada por um imaginário que havia sido formado a partir da leitura de algumas críticas publicadas na imprensa antes do lançamento do filme. Seria uma história escrita e dirigida por pessoas ricas, bem criadas e cheias de culpa, que apresentaria os pobres da periferia como vítimas inocentes. Uma resenha até afirmava haver no filme a defesa do direito dos menos favorecidos de se tornarem bandidos diante da exploração e arrogância das elites dominantes. Enfim, um obra de denúncia social, mais uma visão do mundo cão e injusto que seria o nosso Brasil. Tudo isto em um formato cafona e pretensamente poético.

Pouco a pouco, à medida que as cenas iam se seguindo, minhas expectativas foram caindo. Saí do filme com uma sensação de desmonte, de ter levado um golpe forte. Tive a impressão de ter sido confrontado com uma verdade que resistia em ver, em saber. Uma verdade já conhecida, mas coberta por uma vontade arduamente defendida de ignorá-la. A força da quebra que sofri talvez seja esta: Linha de Passe apresenta um realismo seco, sem concessões, sem máscaras, sem maquiagem, sem ilusões, sem esperanças, sem cor, sem brilho.

Não é o realismo a que estamos acostumados no cinema e que as críticas que li indicavam. Uma realidade que não conheço, que não pertence ao meu mundo, que me é exterior. Não é mostrar a pobreza, a violência, a segregação e a discriminação que as pessoas da periferia sofrem enquanto que os brancos, ricos e cosmopolitas das zonas sul e oeste desfrutam de uma bolha de felicidade em um ambiente de conto de fadas. O incômodo, ao contrário, veio ao perceber que o filme escancara uma realidade que me é interna, que sempre esteve comigo e que procurava inutilmente colocar debaixo do tapete.

Logo no começo, aparece uma São Paulo suja, cheia de viadutos e outras obras públicas mal acabas. As paisagens, o povo, as roupas, o céu, tudo é feio. O filme tem uma luz fosca e amarelada, que deixa todas as coisas e pessoas com uma cor parda, encardida. Pensei: mais uma produção que gosta de mostrar o lado degradante do país, como se fosse só isto: a pobreza. Por que não mostrar que São Paulo tem um lado rico, prédios modernos, verdadeiras ilhas do primeiro mundo? Mas o filme não se restringe apenas à zona leste. Ele mostra ruas dos Jardins e da região da Berrini. Passei a reconhecer, então, que minha vergonha da cidade está presente mesmo nos bairros ricos. As manchas marrons estão por todo lado. Por mais que se façam operações públicas de embelezamento ou de maquiagem, temos sempre os mendigos pelas calçadas cheias de lixo, os ônibus arcaicos e barulhentos lotados de trabalhadores suados, o mau gosto das construções neoclássicas, os carros blindados e com vidros escurecidos, os seguranças truculentos com seus ternos pretos e desalinhados.

O filme segue contando a história de uma família da periferia. Filhos sem pai, a mãe empregada doméstica grávida de mais um filho de pai desconhecido, sufoco econômico, total ausência de apoio governamental, sonhos frustrados. Pronto, agora o Waltinho vai mostrar seu lado humano e cristão e nos explicar como toda esta segregação e falta de amparo conduzem os pobres do país para apenas três opções: ser jogador de futebol, evangélico ou bandido. Outra expectativa que não se cumpre. O filme não é uma aula de sociologia sobre as causas de nossas diferenças econômicas. Os pobres não se revoltam e partem para o crime e a violência contra seus agressores. Os ricos não são malvados arrogantes. Ao contrário, eles também parecem, de alguma forma, miseráveis e desprotegidos. Não vemos nem vilões nem bonzinhos inocentes na tela. Não dá para reclamar ou culpar nada e ninguém pelos fracassos que se sucedem na vida dos personagens.

Quebrar expectativas a todo momento. Esta parece ser a linha que conduz o filme. Tanto para os personagens quanto para quem o assiste. Não recebemos nenhuma esperança de redenção . Ao final, saímos sem explicações que aliviem a nossa angústia, sem uma causa definitiva, sem um inimigo para eliminar e sem a expectativa de governantes que nos tragam o bem-estar. Não podemos apontar como culpados os governos ineficazes, a exploração social, a divisão de classes ou a falta de oportunidades para os jovens do nosso país. A frustração é ainda mais profunda.

De forma dura, Linha de Passe revela que o destino não torce por nós, que não há garantia de que algo de bom nos espera, nem um milagre para cair do céu. Não existe um outro oculto que cuide para que encontremos a felicidade. E esta desgraça não é exclusiva dos pobres, dos ricos ou dos brasileiros. Ela está presente em todos os seres humanos, ela é universal.

Se tirássemos as nossas ilusões, aquelas que nos fazem acreditar que somos privilegiados, de que escapamos, pelas máscaras que vestimos, do nosso desamparo no mundo, poderíamos perceber que somos iguais aos motoboys, aos bandidos, aos evangélicos, aos pobres, aos que não têm pai.

Em obras anteriores, Walter Salles e Daniela Thomas colocaram os protagonistas na estrada em busca de um pai perdido. Em Linha de Passe, nos convencem definitivamente de que a procura é inútil. A humanidade está, ou talvez sempre foi, órfã de pai. E, em nosso momento histórico atual, ainda não sabemos bem como nos virar, como continuar andando sem a crença em um outro que vele pela nossa segurança e satisfação, que nos diga o que é certo ou errado fazer.

Linha de Passe não traz respostas claras para este conflito. Mas, curiosamente, a falta de chão que tive ao assisti-lo, não me pareceu, depois de um tempo, uma experiência ruim. O filme, com o seu realismo duro, com a sua desesperança, com a sua falta de brilho, é estranhamente belo. Mesmo São Paulo, sem qualquer maquiagem, está bonita como nunca a vi antes no cinema ou na televisão. E as pessoas, ainda que com todas as suas carências, são imensamente dignas.

Mas o que mais me intrigou foi o desejo que senti quando o filme terminou. A orfandade e a solidão que compartilhava com os personagens me trouxeram um único impulso. Queria poder abraçá-los fortemente e lhes dizer: puta merda meus irmãos!

2 comentários:

Anônimo disse...

Porque tem horas que só nos resta soltar um grande "puta merda".

Muito bom, o texto.

Márlio Vilela Nunes disse...

...e continuar andando. Obrigado, Mariana. Beijo